Vamos falar de futebol

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 05/08/05

Você convidaria o Maradona pra jantar? Desprezando a celebridade e o craque, conheço gente que nunca faria o convite, pela simples e estranha lógica do futebol que determina que Argentina e Brasil são “rivais” (seja lá o que isso quer dizer), e Diego, porta-voz condecorado das linhas inimigas. Do futebol para assuntos mais corriqueiros (nem por isso menos polêmicos), como religião, política e ciência, podemos nos espantar ao descobrir que essa lógica é mais comum do que parecia a princípio.

A Sociedade para a Neurociência - SfN - reúne as ciências que estudam o mais misterioso e badalado órgão humano, o cérebro. No encontro anual, de 12 a 16 de novembro, a SfN tem como palestrante nada menos que Dalai Lama, ícone da aldeia global desde que enfrentou a ocupação chinesa no Tibet, em 59. Esse nunca foi meu herói favorito. De posse de uma causa legítima e coragem para peitar uma super-potência, o Lama acabou alimentando os interesses estratégicos do ocidente na região. A aproximação entre China e EUA mudou o quadro, e pra pior.

Uma petição tem circulado entre os membros do SfN, contra a presença do “Oceano de Sabedoria” no encontro. Fica difícil distinguir as motivações políticas, científicas e religiosas envolvidas na reação à palestra do Lama. Como a revista Nature não podia deixar passar, “muitos dos cientistas que iniciaram o protesto são de origem chinesa”. Mas “muitos” neurocientistas têm origem chinesa de todo modo! (Estatisticamente, qualquer petição mundial tem pelo menos 1/5 de assinaturas chinesas). Entendemos melhor o caso se dermos uma olhada no teor da palestra, no teor da petição, e nas reações dos cientistas. O Lama vem tentando uma aproximação entre budismo e neurociências, defendendo uma correlação entre a prática da meditação e o aperfeiçoamento da arquitetura cerebral, e é disso que trata a palestra. Já a petição alerta contra a “pesquisa limitada e rigor cientifico comprometido”, ou, nas palavras mais diretas de Robert Desimone, do MIT, “a SfN precisa se distanciar o mais possível do Dalai Lama e de suas crenças”. Pela primeira vez, estou firme ao lado do Grande Lama, nessa lamentável demonstração de dogmatismo. Não seria melhor que o prêmio Nobel da Paz recusasse então o convite, deixando o SfN deste ano mais pobre de idéias (e de espírito, vá lá)?

O Camboja tem 13 milhões de almas, 90% delas budistas, e está entre os 20 últimos países no Ranking da FIFA. Sou dos que acreditam que a meditação é benéfica para o sistema nervoso, mas, ao menos nesse caso, não melhorou o desempenho dentro das quatro linhas.


Aquarela científica

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 22/07/05

O lingüísta Noam Chomsky é famoso, entre outras coisas, pela seguinte frase, perfeita em sua construção gramatical: “idéias verdes incolores dormem furiosamente”. Chomsky queria mostrar a linguagem como um poderoso módulo mental, alheio às nossas mundanas preferências pelo possível e pelo crível. Será que, a exemplo da gramática de Chomsky, a visão de cores também é um imperativo biológico? Vemos as cores tal como aparecem na natureza ou elas são ditadas por nossa biologia? De certo modo essa pergunta já foi respondida desde John Dalton - ele próprio um daltônico - em 1794, e pelas diferenças observadas entre as espécies de animais. Alguns não enxergam as cores, ou o fazem de modo precário, outros têm visão cromática diferente da nossa: é distinta a beleza que as abelhas apreciam nas flores. Em uma terceira categoria, que deveria ensinar humildade aos humanos, há seres com visão tetracromática, ou seja, misturam quatro - ao invés das nossas três - cores puras para compor um espectro de visão mais, digamos, psicodélico.

Uma abordagem inovadora da visão de cores foi proposta pelo biólogo chileno Humberto Maturana em 1968. Ás vezes, atribuímos a mesma cor a um objeto, apesar de mudarem as condições de iluminação (e a cor que estamos “realmente” vendo). Por exemplo, continuamos dizendo que uma banana é amarela após as luzes se apagarem, mudando os comprimentos de onda que excitam nossa retina. Maturana propôs então a interessante correlação entre a nossa atividade cerebral e o nome que damos à cor. Nessa ótica, a experiência da visão de cores não é nem subjetiva (não depende apenas dos nossos arranjos individuais) nem objetiva (os comprimentos de onda que um objeto reflete), mas depende profundamente no modo como nós, humanos, vivemos as cores na linguagem. Parece que, afinal, as idéias de Chomsky estavam mesmo verdes!

Na obra “Simulations”, o pintor Jonathan Feldshuch envolve a atividade científica na ciranda das cores. Seus quadros revelam uma relação surpreendente entre a interpretação do mundo - às vezes invisível - dos cientistas, e suas escolhas cromáticas: o vermelho das explosões nucleares, as cores frias do cosmos, o colorido pulsante do mundo microscópico. Para quem quer e pode, o trabalho de Feldshuch está exposto até o dia 9 de julho na galeria Cinthia Broan, em Nova York. Eu me contento em imaginá-lo, com todas as cores.


Não preservem o Pombo

Beto Vianna - Jornal O Tempo - 04/07/05

Se podemos confiar (e acho que deveríamos) na lista da IUCN - União Internacional para a Conservação da Natureza - as informações, em números aproximados, são as que seguem: 10 mil espécies de aves no mundo, 1.700 no Brasil; 1.200 espécies de aves ameaçadas de extinção, 120 no Brasil. Os números dizem que, comparados à média mundial, estamos em melhor situação, e esse é um grave engano. Com uma fauna tão rica, o Brasil acolhe também um grande número de espécies endêmicas, ou seja, aquelas só encontradas no solo pátrio, amplificando o impacto da selvageria predatória. Números não comovem ninguém, então, pensem na criatura com o sugestivo nome de rolinha-do-planalto, endêmica e criticamente em perigo, na escala da IUCN. Biodiversidade à parte, é um belo animal, cujo nome científico - Columbina cyanopis - faz referência aos olhos azuis. Para sua desgraça, a pombinha habita uma das regiões mais visadas do país, entre o atual campeão de desmatamento, o Mato Grosso, e o Planalto Central, de onde saem as diretrizes que poderiam salvar sua vida. A rolinha-do-planalto foi vista pela última vez na Serra das Araras, no Mato Grosso do Sul.

Não sou ambientalista de carteirinha. Aliás, nem sei o que significa preservar “o ambiente”, posto que qualquer ambiente é tanto definido quanto continuamente modificado pela atividade dos organismos. O que não me torna insensível à destruição ativa das condições de existência dos seres vivos, principalmente na escala com que o fazemos. E o que é mais pavoroso são os motivos para a depredação organizada.

Os EUA, abaixo de nós em biodiversidade e na consciência ambiental de seu governo, têm lá sua legislação para espécies ameaçadas, o Endangered Species Act. Pois esse conjunto de leis vem sendo ele próprio ameaçado pelos esforços conjuntos da Casa Branca, do congresso americano, dos proprietários de terra e das indústrias. E isso quem diz é o New York Times de 26/06. A posição do republicano Richard Pombo (presidente do comitê de recursos da câmara dos deputados), é ilustrativa. Segundo o parlamentar, o objetivo é “modernizar” o Endangered Act, trazendo-o para o século XXI. Isso significa o que você já adivinhou: subordinar a conservação das espécies aos interesses econômicos. Interesses de quem? Essa é um engodo antigo nas discussões ambientalistas no Brasil, travestir lobbies poderosos de necessidades da população em geral. Nesse caso, o que é ruim para os Estados Unidos é uma catástrofe para o Brasil, inclusive para o pombo.


A linguagem dos animais

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 21/06/05

“A linguagem dos animais” é o nome de um belo conto de As mil e uma noites, de outro ainda nas Fábulas Italianas, do cubano Ítalo Calvino, e o princípio organizador do próprio gênero “fábula” no ocidente, de Esopo a La Fontaine. Da arte à pretensa realidade, vemos o cientista como um legislador austero, torcendo o nariz para o maior de todos o pecados, o antropomorfismo, isto é, a atribuição de características humanas a outros seres animados e inanimados: o boi contente, a roseira apaixonada, o mar impiedoso. Mas peca-se tanto por excesso quanto por escassez. O reverso da medalha é o antropocentrismo, a insistência de que a humanidade é a estrela mais brilhante na constelação dos seres do universo. Muitas pesquisas com a utilização da linguagem humana por outros animais têm obtido resultados importantes e contrários a essa idéia fixa. A gorila Koko com a linguagem de sinais, passando por golfinhos que manipulam estruturas gramaticais, até o papagaio africano Alex que, ao que consta, não apenas repete mas entende a piada.

Afinal, os animais têm linguagem? O “não” usual a essa pergunta reflete a certeza de que linguagem é o sistema de símbolos e estratégias discursivas tão habilmente manejado por nós nos bares, almoços de família e chats da internet. Mas há mais na linguagem do que ruge a filosofia ocidental. Há uns 40 anos o antropólogo Gregory Bateson nos deu a seguinte dica: se o seu gatinho mia, a melhor tradução não é “leite! leite!”, apesar de geralmente você estar absolutamente correto em interpretar assim. O bichano está dizendo algo como “dependência! dependência!”, ou seja, ele está se referindo à relação estabelecida com o dono. Isso não é nenhuma fábula de Esopo, mas um processo largamente disseminado entre os mamíferos, animais que são cuidados e ensinados, muitas vezes pela mãe mas, a rigor, por qualquer membro mais velho da comunidade.

Aqui estou eu utilizando a respeitável fórmula de falar sobre um assunto científico (ou literário?) - a linguagem dos animais - mas apenas porque esse conjunto de símbolos que apontam para um objeto é o único instrumento que eu, sendo humano, tenho para negociar a aceitação, a confiança, e talvez até o apreço de meus interlocutores. E isso é mamífero, demasiado mamífero.


Inteligente o quê?

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 13/06/05

Em um 1809 nem tão distante assim, o reverendo William Paley publica a sua Teologia natural, repisando um argumento antigo em nossa cultura: as belas e adaptadas formas da natureza são belas e adaptadas demais para terem surgido por mero acaso, então, algum arquiteto inteligente deve estar por trás de tudo. Idade por si só não torna um argumento ruim, tanto que hoje, após dois séculos de construção e consolidação das teorias evolutivas, estamos nós aqui às voltas com essa mesmíssima questão.

A notícia: a respeitada instituição científica norte-americana Smithsonian vai abrir um de seus auditórios para a apresentação do vídeo “Planeta Privilegiado”, após uma contribuição do Discovery Institute (que produziu o vídeo) de U$16.000 para os cofres da entidade. O conteúdo do vídeo: a tese de Paley em versão moderna e high-tech, apelidada de “teoria do design inteligente”. Contribuições para uma instituição científica são sempre bem-vindas, mas não teríamos aqui um caso clássico de venda de alma? Há quem considere a tese de um arquiteto divino uma alternativa científica, com todos os méritos. Não é. Eu admito que esse é um assunto delicado, pois esbarra nas crenças religiosas de muita gente, mas é preciso separar o joio do trigo, e nisso eu tenho a grande maioria das religiões ao meu lado. Toda visão de mundo pode e deve ser respeitada, assim como, do mesmo modo, deveríamos respeitar as fronteiras entre os domínios de atividade humana. Para uma explicação ser considerada científica, é necessário que passe por certos procedimentos de validação, e o argumento da incredulidade pessoal (aquele que diz “isso é tão improvável que precisa ter uma causa milagrosa”) certamente não é um deles. Acontece que essa é justamente a proposta do design inteligente, um nome que chega a ser irônico para designar tanta preguiça intelectual.

Quem acha que esse é um quiprocó exclusivo de nossos vizinhos ianques pode estar perigosamente enganado. Nós, brasileiros, desfrutamos uma relativa imunidade ao equivocado debate entre religião e ciência - alimentado nos EUA pelas piores razões políticas - mas a tese do design inteligente ganha alguns adeptos pelo mundo levantando bandeiras bem mais honrosas: a liberdade da expressão e a igualdade de direitos. Nessa perspectiva, que mal pode haver em ensinar o design inteligente em nossas escolas e universidades, em pé de igualdade com “outras teorias”? Antes que o seu político local corra para apoiar a iniciativa, é bom lembrá-lo que essa é apenas mais uma maneira do conservadorismo insinuar-se pelas portas dos fundos da educação científica. E isso não é só desastroso: é burro.


“Grandes, ferozes e extintos”

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 31/05/05


Muitos de nós já vivemos na infância (e mesmo depois!) a febre dos dinossauros, ou dinomania, como é chamada nos EUA. Em um desenho Disney sobre o tema, o herói Aladar - um iguanodonte adotado por um grupo de lêmures - tem sua vida profundamente transformada após a queda de um meteoro em seu planeta natal - o nosso, é claro.

A catástrofe que abalou Aladar e o faz reencontrar os de sua espécie em um mundo de privações e ameaça constante não poderia ter sido melhor escolhida pelos realizadores de “Dinossauro”. O choque cósmico é a mais popular, bem articulada e debatida hipótese explicativa da extinção dos dinossauros e vários outros grupos de organismos na fronteira dos períodos cretáceo e terciário - apelidada de K/T - há 65 milhões de anos. E o local provável do impacto não é menos conhecido: a província de Yucatán, no México, onde uma imensa cratera de 200km de diâmetro tem idade compatível com o período da grande mortandade. Em 23 de maio último, mais lenha foi colocada nessa fogueira ancestral. Em uma conferência da União Geofísica Americana, sediada na multicultural New Orleans, a paleontóloga Gerta Keller apresentou evidências de que entre a queda do cometa e o período das extinções há um lapso de 300 mil anos. Ponto contra a hipótese catástrofica? Mais ou menos.

Primeiro, a principal evidência do impacto vem de uma fonte diferente: a quantidade de irídio em várias partes do mundo, justamente em camadas geológicas datadas de 65 milhões de anos. Normalmente, essa substância não ocorre em tal concentração na Terra, o que pode ser explicado pela “invasão do espaço”. Assim, o choque pode não ter acontecido em Yucatán, mas em algum outro lugar (embora eu continue torcendo para que um evento tão importante permaneça aqui, na América Latina). E há um dado mais interessante para apoiar a extinção catastrófica. Há muito que a imagem dos dinossauros mudou drasticamente. De seres pachorrentos, pesados demais para sobreviver em um mundo mais ágil, os dinossauros transformaram-se em formidáveis predadores e herbívoros adoráveis (quem não se lembra do “Parque dos Dinossauros”?), correndo pelas planícies e cuidando amorosamente dos filhotes. Uma morte lenta e agonizante simplesmente não se coaduna com essa imagem majestosa: é preciso que eles tenham desaparecido em um estrondoso gran finale!

Em “Dinossauro” os mestres da sobrevivência em situações-limite são os lêmures, ou seja, mamíferos primatas, assim como nós. O T-Rex se foi para sempre mas a humanidade está aqui pra contar a história, e adoramos os temíveis dinossauros pois eles são, como escreveu o saudoso evolucionista Steve Gould (citando alguém que já não me lembro mais), “grandes, ferozes e extintos”.


Os prazeres do elo perdido

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 18/05/05

As ciências históricas contam muitas vezes apenas com indícios imperfeitos, incompletos e indiretos dos fatos investigados, demandando muito trabalho posterior de análise das pistas garimpadas. Por isso prezamos tanto a raridade com que um objeto genuíno - o crânio de um mamífero extinto; a correspondência secreta entre duas personalidades históricas; uma formação rochosa de imensa antigüidade - surge do próprio trabalho de garimpagem. O interesse é maior quando esse objeto é considerado de transição. Como precisamos de marcos bem-definidos para descrever processos históricos, a busca do “elo-perdido” pode ser uma saudável ficção nos esforços para compreender o mundo.

O observatório espacial infravermelho ISO (sigla de Infrared Space Observatory) da Agência Estação Européia (ESA), realizou 30.000 observações espaciais distintas desde sua entrada em órbita, em novembro de 1995 até apagar suas luzes em maio de 1998, mas os dados coletados nesse período continuam a trazer gratas supresas para os cientistas, principalmente em relação à história estelar. Há muito que a observação espacial considera que as condições geradas pela explosão de uma supernova (um tipo de astro de comportamento e evolução peculiares) ou pelo choque entre galáxias, são propícias ao nascimento de uma estrela. Mas o que realmente acontece entre esses dois fenômenos? É possível observar o pulo do gato?

Em 29 de março deste ano foi anunciada a descoberta desse autêntico objeto de transição, graças aos dados proporcionados pelo ISO. Um indício do processo é a emissão de uma radiação característica, causada pela “excitação” de moléculas de hidrogênio após a explosão estelar ou do choque inter-galático. Essa radiação pode ser detectada pela observação infra-vermelha, e é aí que entra o ISO. Uma equipe de astrônomos alemães analisou as observações do ISO de um encontro entre duas galáxias - batizado de “Antennae” - em que a região intermediária apresenta um estado excitado de moléculas de hidrogênio, ou seja, uma fase “pré-estrela” de uma região claramente afetada pela energia mecânica gerada pela colisão de duas galáxias.

É reconfortante quando a física - rainha das ciências - ou, no caso, a astrofísica, abre suas respeitáveis portas para a investigação histórica. Mesmo que a elucidação da evolução estelar tenha “poder preditivo” (ou seja, ela remete à história de qualquer estrela, em qualquer ponto do tempo e do espaço), a busca por um objeto de transição nos lembra como é cientificamente importante o olhar histórico, a descoberta do particular.