Estupidez II

Beto Vianna, Jornal O Tempo, 06/12/05

Na esteira do excelente artigo de José Maria Couto Moreira (O Tempo, 07/12/05), que diz não haver “em nosso inesgotável vernáculo, adjetivação mais apropriada para aqueles que resolvem exibir no corpo desenhos de toda a sorte, às vezes intricados, gravações na carne que nada traduzem senão uma infeliz criação de momento”, quero oferecer minha contribuição, pois concordo com o advogado ipsis verbis em gênero, número e grau. E que santo grau!

Esses modismos absurdos marcam, perfuram e mancham indelevelmente nossa pele original, corrompem o corpo e nenhum benefício trazem à alma, pois apesar das tatuagens trazerem às vezes singelos dizeres (como “Eu amo a mamãe”, no braço do marinheiro) via de regra não trazem nenhuma mensagem construtiva para a humanidade. Por exemplo, os gavião-kyikatêjê pintam o corpo de cima abaixo, não apenas nos rituais da tribo (o que já seria ruim o suficiente) mas até num simples passeio pela floresta! Como disse o advogado José Maria Couto Moreira, apropriado inclusive na metáfora silvícola, “um cipoal de linhas e curvas que terminam por assemelhá-la mais a um monstro pré-diluviano, temível, repugnante, enfim, um adversário da natureza humana”. Consensus omnium!

E os piercings, essa agressão ao corpo? Prática só comparável à dos extintos botocudos, de colocar uma bolacha de madeira nos lábios - até de crianças! - deformando pra sempre as linhas originais da perfeita boca humana, ou dos (ainda vivos!) matis, na fronteira do Peru, conhecidos como caras-de-onça pelos adornos trespassando o nariz. Aquilo é bonito? Um horror! Governo brasileiro e Funai melhor fariam enviando uma força-tarefa às reservas indígenas para arrancar, na marra, esses ataques deliberados à nossa natureza, opus dei.

Há antropólogos, pós-modernos, pós-hippies e outros seres obtusos que explicam esse costume nojento como “simbólico”. Mas isso é evidentemente um absurdo, pois, se esse fosse o caso, as tatuagens que os adolescentes e os adolescente tardios colocam no corpo seriam simbólicas também! É como algumas tribos africanas e os antigos egípcios, que punham e põe presentes e comidas para seus mortos. Morto vai abrir e usar o presente? Vai comer a comida? Não vai. E mesmo assim essa turma que consome o dinheiro do contribuinte nas universidades públicas chama isso de “simbólico”. Haja paciência! E as flores? Que hábito mais estranho é esse das pessoas colocarem flores para seus saudosos entes queridos? Alguém pode me dizer com que finalidade? Cui bono?

Expliquem-me o motivo de se perfurar uma parte do corpo, a orelha, por exemplo. Quem prefere beijar uma orelhinha de mulher - a coisa mais graciosa do mundo, quando intocada - com aquele pedaço de metal, às vezes até enferrujado, atravessado no lóbulo? Pior são os pais, que na sua malignidade, fazem isso quando a pobre criaturinha ainda é um bebê e não pode se defender da deformação indesejada! Qui bene amat, bene castigat...

E há gente ainda mais estrambótica que explica essas agressões à morada da alma como parte de uma “cultura”. Nonsense! Índios, marinheiros e adolescentes são dignos cidadãos brasileiros, e como tais, que ajam dentro dos parâmetros mínimos da civilidade e dos bons costumes. Essas tribos infernais de funkeiros, metaleiros, punks, trash, grunge, hip-hop-hurra e sei lá o que mais, isso é cultura? Que tomem banho, cortem e tirem a tinta de seus cabelos, arranquem os pregos e desenhos do corpo e coloquem uma roupa decente. Talvez a raiz do problema esteja mesmo na cultura, pois essas pseudo-pessoas são incapazes, como todo ser humano normal e natural, de escutar as obras primas da música universal - como Ray Coniff - ou da incomparável tradição musical de nossa pátria - como Amado Batista - e entregam-se, ao invés disso, a essa catarse animalesca de ruídos eletrônicos (danosos, inclusive, para a saúde auditiva). O tempora, o mores!

Como disse o célebre filósofo e estadista George W. Bush ao bombardear 5.000 anos de civilização humana, “a melhor cultura é a minha”. Quod erat demonstrandum.

Decência, homofobia e outras anomalias

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 27/11/05

Pra que serve o sexo? A resposta depende da audiência. Há quem diga que não apenas não serve pra nada, como devíamos evitá-lo o mais das vezes. Que seja só no casamento, por favor, e, se possível só pra reproduzir. E sexo entre os de mesmo sexo? Pior ainda, segue nosso interlocutor nem tão imaginário assim: um desvio, coisa de depravado. Inútil, anômalo e anti-natural. Será?

Desculpem-me os que pregam o sexo como um mal necessário, nosso recurso suficiente para perpetuar a espécie, sua única e digna função. Sexo, biologicamente falando, não é sinônimo de reprodução. Sexo é recombinação genética, o embaralhamento do material genético de dois organismos que pode ou não resultar num terceiro. Reprodução é o surgimento de um organismo individual a partir de um (se não houver sexo) ou dois (se houver) outros. Nos primeiros dois bilhões de anos da história da vida, os organismos só se reproduziam sem sexo. E, além do mais, faziam sexo sem se reproduzir, como continuam fazendo até hoje. Ligamos uma coisa a outra apenas porque no nosso caso (e no de muitos outros organismos), houve um acoplamento histórico da recombinação genética com o momento da reprodução.

A bactérias podem passar genes diretamente de uma pra outra, sem que se reproduzam. Parafraseando Lynn Margulis, é como se você desse um beijo em uma pessoa de cabelo verde e saísse com o cabelo daquela cor. “Macho” e “fêmea”, nesse caso, são categorias móveis, se, graças às nossas preferências culturais, quisermos chamar assim as bactérias doadora e receptora. Afinal, um “macho” pode facilmente vir a trocar de papel em sua próxima interação. Em organismos sexuados, apesar de macho e fêmea terem aí um significado mais restrito (os doadores do espermatozóide e do óvulo) os papéis também podem se inverter. Isso acontece com seres hermafroditas e outros que trocam de sexo, como alguns peixes e anfíbios.

Você pode retrucar, mas não é desse sexo que estamos falando: por maiores que sejam as estripulias genéticas desses micróbios e seres rastejantes, sexo é o encontro sensual entre dois indivíduos, aquela confusão de braços e pernas, com todos os “hmmms” e “aaahs” característicos. Tudo bem. Apenas como exemplo, conheça então nosso parente mais próximo, o bonobo. As credenciais desse animal no meio científico são as melhores possíveis naquilo que nós mais prezamos: inteligência e linguagem. Os bonobos são as estrelas de uma linha de investigação conhecida como Ape Language Research (pesquisa de linguagem símia). O bonobo mais famoso, Kanzi, interage com a pesquisadora Sue Savage-Rumbaugh, da Georgia State University, utilizando símbolos visuais, assim como você e eu estamos fazendo agora.

Pois os bonobos, seja na floresta ou no cativeiro (para desespero dos guias nas visitas escolares ao zoo), são mestres absolutos na arte do sexo. A reprodução é apenas uma pálida função, quase um efeito colateral da amplitude comportamental dos bonobos na sexualidade. Os bonobos entregam-se ao encontro homossexual como uma atividade corriquira, e envolvem na brincadeira parentes e até (perdoai-lhes, eles não sabem o que fazem) crianças. Tia e sobrinho, velhos amigos e companheiras de cela praticam sexo nas mais variadas posições, sem limite no número de parceiros. Os bonobos são adeptos inclusive (entre suas muitas outras opções) do sexo face-a-face, tão distintivo da humanidade. Quando dois grupos de bonobos encontram-se em uma área de alimentação, ao invés da esperada briga pelo butim, o mais provável é que as fêmeas liderem um encontro amoroso entre as duas facções. Se para alguns humanos a agressão é um substituto do sexo, nos bonobos é o amor livre que substitui a pancadaria. Em vez de considerá-los pervertidos, devíamos antes maravilharmo-nos com a forma com que carícias e prazeres cumprem várias funções sociais na comunidade bonoba. Os bonobos têm muito a nos ensinar, se formos capazes de colocar nossos piores preconceitos de lado.

Não sou insensível a uma crítica-padrão a tudo que acabo de dizer: “mas você está falando de seres dominados pela biologia; o humano é senhor de suas escolhas, não tem que se sujeitar aos ditames da natureza - só nós temos deveres morais”. Primeiro, será mesmo apropriado dizer que outros organismos são “controlados pela natureza”? Assim como nós, outros seres vivos são modificados e modificadores de seu ambiente e de outros organismos na interação, ou seja, continuar a vê-los como mísseis tele-guiados é um péssimo mito. E se nós - graças à inteligência, cultura e “livre-arbítrio” - podemos optar pela moralidade, alguém pode me dizer, afinal de contas, que moralidade é essa?

Sabermos que bactérias fazem sexo sem reprodução e bonobas têm uma queda por suas amigas não significa que “devemos” ser promíscuos ou homossexuais. Nenhum exemplo natural é um guia sobre que condutas devemos seguir, e o contrário também vale: se a homossexualidade fosse anti-natural ou anômala, não veríamos tantos seres “dominados pela biologia” imersos nessa prática. Do lado humano, nada em nossas culturas (pois, assim como Minas, elas são muitas) serve de lei universal para o jeito certo de fazer a coisa. Boa parte da humanidade é e historicamente sempre foi homossexual (pergunte aos gregos), promíscua, poligâmica, e sabe-se lá o que mais. Homofóbicos e sexualmente conservadores precisam decidir de onde vão desenterrarar seus argumentos, pois há muito que, das mais simples criaturas unicelulares até os humanos mais bem-dotados de livre-arbítro, todos parecem ter uma visão bastante avançadinha da forma e da função do sexo. Se continuarmos a passar nossa responsabilidade de escolhas morais para a natureza - ou qualquer outra suma autoridade - talvez ela nos mostre aquilo que não queríamos ver.

Um cartucho não é apenas um cartucho

Beto Vianna - Jornal O Tempo - 01/11/05

O que separa o humano do mundo natural é a inteligência, a capacidade de resolver problemas de forma planejada. Se não fabricássemos instrumentos, estaríamos perdidos diante das bestas terríveis que habitavam as savanas africanas, berço da humanidade. Garras, dentes e força bruta foram substituídos no humano por um arsenal bélico de fabricação própria.

Você com certeza já ouviu essa ladainha sobre a escalada vitoriosa do humano nesse vale de lágrimas que é o nosso planeta. Só há um problema: pra quê um mamífero de 70kg, um verdadeiro Godzilla se comparado à esmagadora maioria dos animais circundantes, composta de ratinhos, besourinhos e outras “feras” do gênero, se daria ao trabalho de incrementar ainda mais o seu poder destrutivo? A resposta que eu mais gosto para essa pergunta é a de “2001”, a odisséia de Kubrick: seres d´outro planeta deixaram aqui a sugestão do porrete e nossos ancestrais animaram-se com o novo brinquedinho. Não é gozação. Talvez tirando a parte “d´outro planeta”, é muito mais provável que todo tipo de acidente histórico, e não a estrita necessidade, tenha colocado a indústria de armamentos bem no nosso nariz.

Fabricar objetos úteis, tranformar partes do ambiente segundo um design planejado, não é prerrogativa do humano. Chimpanzés o fazem, o brasileiro macaco-prego o faz, mais de um passarinho usa gravetos cuidadosamente escolhidos para pegar larvas sob a casca da árvore, e castores, cupins, formigas, abelhas, joãos-de-barro e milhares de outros poderiam concorrer a qualquer prêmio de arquitetura ecologicamente correta. Mas nenhum bicho parece tão atraído por artefatos pontudos e balísticos quanto nós mesmos. Especular sobre os motivos de outrora é divertido, embora inútil. O presente está mais à mão. Não sou psicólogo, mas, como todo brasileiro, gosto de dar palpites sobre a mente humana, então vamos lá.

Tenho uns amigos do nobre sexo masculino que adoram armas. Acham bonito, atraente, às vezes até “macho” (há quem diga o contrário) segurar e disparar uma pistola, assim como certos motoqueiros têm um prazer lascivo em sentar sobre a máquina, uma extensão do pênis, diria o velho Freud. Ninguém melhor que Quentin Tarantino soube apreciar essa diferença entre ter prazer de matar e simplesmente ter prazer. Em “Pulp fiction”, o personagem de Bruce Willys procura a arma de sua preferência para se vingar. Vê uma serra elétrica. Como todo fã de filmes B sabe, a serra elétrica evoca o instinto sanguinário básico. Apesar do adjetivo “elétrica”, é mais o equivalente de garras e dentes que da tecnologia da morte. E então Willys repara que logo ao lado há uma bela, poética e fálica espada samurai. A cena que mostra a expressão de deleite do ator segurando a espada merecia ser tombada como patrimônio psíquico da humanidade. Agora ele não quer só matar, ele quer matar com a espada.

Os mais velhos deliciavam-se com o diretor John Ford, que fez filmes “bons, maus e feios” sobre a substituição da lei pela arma. Qualquer referendo ali era resolvido na bala, e ai do xerife que solicitasse o registro a John Wayne. Eu, que sou da mesma geração de Tarantino, perdia minhas sessões da tarde vendo os filmes de samurai e kung-fu. É incrível como os japoneses conseguiram transformar suas filosofias de base budista em espirros de sangue, mais vendáveis para o consumidor ocidental e os ocidentais emergentes de sua própria terra. Os chineses foram mais sutis. Apostaram no “corpo como uma arma” - que, dependendo do enfoque, pode ter até conotações pacifistas. Fizeram escola no ocidente. Por exemplo, o personagem do antológico “Kung fu” estrelado por David Carradine, certamente teria votado “Sim” no referendo. Já os bons, medíocres e belos personagens de “Matrix” e “As Panteras” são truculentos adeptos do “Não”, apesar das desarmadas façanhas acrobáticas. E os pentelhos atuais não desperdiçam munição quando o assunto é objeto bélico de desejo. Esses têm ao seu lado a maquiagem digital para curtir com mais realismo os episódios desordenados dos cavaleiros Jedi e seus sabres de luz. Sabres de luz! George Lucas quase - quase, pois falta-lhe sutileza - conseguiu aliar tecnologia, poesia e brutalidade em uma só arma. O sabre de luz é a “nobre arma” nas mãos de uma mistura de guerreiro sanguinário com padre franciscano. Licença divina para matar com uma espada iluminada - o que poderia encantar mais nossas crianças e adultos infantilizados (eu, inclusive)? Que apelo pode ser mais comovente e convincente contra o desarmamento do mocinho? Quem não iria desejar profundamente - caso a chata lei brasileira permitisse sua compra, posse e uso - botar as mãos naquele canudo fosforescente, e, de quebra, decepar os membros e a cabeça do malfeitor (ou de quem quer que seja) por puro gozo e encanto?

Rezemos pra que agora, após nossa estrondosa vitória nas urnas, o governo desista de sua interferência autoritária em nossos sonhos sublimes e abra o coração, distribuindo gratuitamente para a população (só os homens: as mulheres podem continuar brincando de boneca) armas - belas armas, de todos os tipos. Seis-tiros para a terceira idade, automáticas, espadas samurai e serras elétricas para nós os maduros, e para os pirralhos... não sei, talvez eles curtam umas granadas de mão... vai lá saber o que anda na cabeça dessa juventude!

O ano do chimpanzé

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 02/10/05

“Nos últimos anos, os pesquisadores têm descoberto (...) tantos fósseis pré-humanos novos e significativos que o destino de quaisquer anotações didáticas só pode ser descrito com o lema de uma economia fundamentalmente irracional - obsolescência planejada”. Esse comentário de Steve Gould, de 1976, ilustra o acúmulo quase frenético de evidências da evolução humana desde a descoberta do primeiro fóssil do Homem de Neanderthal, há quase 200 anos. De lá pra cá, a situação não mudou. Apenas em nosso curto século XXI, a paleoantropologia - ciência responsável por desenterrar nossos ancestrais - brindou-nos com dezenas de surpresas, desde o fóssil mais antigo (“Toumaï”, de 6 milhões de anos), até um “gnomo” de apenas 1 metro de altura, que viveu há meros 13 mil anos na Indonésia.

Diante desse quadro, o que fazer com a tradicional pergunta pelo “elo perdido” da evolução humana? Não há apenas um, mas centenas de elos, uma verdadeira floresta de achados que serve a teorias diversas, às vezes até conflitantes, de nossas relações evolutivas. Mas admito que o alvo da pergunta é uma caricatura de nossa evolução, que, na sua versão mais grotesca, diz que “o homem veio do macaco”.

Esse é um mito, e daqueles mitos ruinzinhos, que embaçam a vista. Qualquer macaco atual é, como já diz o adjetivo, atual, com uma história evolutiva própria, assim como os humanos têm a sua. Há duas fontes importantes de perpetuação dessa cantilena. Uma é a facção da direita evangélica que quer, a todo custo (por motivos políticos, diga-se) “desmascarar a heresia darwinista”. O efeito retórico é avassalador: milhares de fiéis voltam pra casa dignificados e agradecidos ao pastor após ouvir que seus avós não têm domicílio fixo no zoológico local. É preciso enfatizar os limites desse fenômeno, pois nenhuma religião séria dedica os ensinamentos a derrubar a evolução, seja porque seus seguidores aceitam as evidências científicas ou por entenderem que, de todo modo, essa não é uma questão de sua alçada.

Mas a principal fonte do mito nasce nos próprios corredores da ciência e transborda pela imprensa até desaguar na conversa com o motorista do táxi. Muitas pesquisas com primatas (o ramo mamífero que partilhamos com os macacos) são divulgadas como se fossem apenas uma etapa na decifração da natureza humana. Aceito que tenhamos um interesse especial em nós mesmos, e que a ciência busque a publicidade como um caminho para o auto-financiamento. Mas, como dizem em Portugal, “tudo que é demais, demasiado é”. Transformar nossos parentes modernos em fósseis vivos, estacionados num degrau mais baixo da escada evolutiva, é um desrespeito a essas criaturas fascinantes por mérito próprio. Uma ofensa à famiglia, para citar Michael Corleone.

Em 2005, duas notícias interessantes em si mesmas foram içadas à condição de revelações da mais alta importância pelo motivo errado, na minha humana opinião. Em setembro, as duas mais prestigiosas revistas científicas - Science e Nature - noticiaram o tão esperado sequenciamento do genoma do chimpanzé. A Nature foi além e dedicou a sua edição de 01/09/05 a esses simpáticos primatas. O motivo de tanto alarde: já há algumas décadas é consenso na comunidade científica que o chimpanzé - ao lado de seu primo menos famoso, o bonobo - é o parente evolutivo mais próximo do humano. Além do parentesco comprovado por análises anatômicas e moleculares, o chimpanzé também é estrela das avançadíssimas ciências cognitivas, pois o seu estudo abre - assim dizem os acadêmicos - uma “janela” para entendermos a inteligência, a linguagem e o comportamento humanos. Isso sem falar na pesquisa médica. Inúmeras doenças que nos acometem - de gripezinhas à tuberculose e a AIDS - são igualmente perniciosas para o chimpanzé, dadas as incríveis semelhanças da fisiologia, do sistema imune, e por aí vai.

E a segunda revelação é ainda mais peculiar. Enquanto os fósseis humanos contam-se aos milhares (vide o primeiro parágrafo), a mesma edição da Nature noticia o primeiro fóssil chimpanzé já descoberto na história. Não deu pra sentir o impacto da notícia? Então pense assim: enquanto passamos quase dois séculos debatendo sobre o misterioso “elo perdido” da evolução humana, até este nosso ano de 2005 a evolução do nosso parente mais próximo, essa sim, estava envolta em um mistério atordoante! Se com tantas evidências ainda não sabemos de onde viemos, porque ninguém nunca antes perguntou “e de onde diabos vieram eles”? O macaco veio do humano (desculpem-me por ajudar a perpetuar o mito, assim de ponta-cabeça) seria uma resposta plausível, muito plausível. Até este nosso ano de 2005.

Já fui acusado, injustamente, de denegrir o humano. Ao contrário. Assim como torço pro América e acho nós americanos o máximo, também ostento orgulhoso meu brasão da famiglia Homo sapiens. Mas após uma centena de anos beneficiando-nos clínica e culturalmente, estudando, dissecando, enjaulando, dizimando, comprimindo suas populações para dar espaço à nossa, destruindo seus habitats de maneira irresponsável, será que não podíamos ao menos uma vez, só este ano, generosamente ofertar a esses animais - sejam eles primos ou não, isso realmente não importa - os nossos esforços tão humanamente inspirados? 2005 é o ano do chimpanzé, não por nossa causa, mas em causa deles.

Diversidade biológica e democracia da informação

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 13/09/05

Como podem os pesquisadores da biodiversidade, trabalhando às vezes a milhares de quilômetros uns dos outros, contribuir para a construção de um quadro coerente da totalidade conhecida das espécies de organismos? Ajuda muito o sistema binominal criado por Linné no século XVIII (em que o gênero - por exemplo, Homo - e a espécie - sapiens - descrevem a unidade básica de um sistema hierárquico), mas sua adoção universal não garante, por si só, uniformidade na base de dados. Cientistas podem descrever o mesmo grupo com nomes distintos e de forma independente, como já aconteceu diversas vezes, gerando acalorados debates sobre a precedência e a adequação dos nomes propostos.

Trata-se de uma boa notícia, portanto, ver as características positivas da rede mundial de computadores - velocidade e democratização da informação - servindo de inspiração e veículo para o surgimento de uma grande base de dados integradora. O Programa Catálogo da Vida nasceu em 2001 de uma parceria entre o projeto inglês Species 2000 e o norte-americano Integrated Taxonomic Information. A fonte dos dados não se restringe a essas duas instituições, apesar de serem elas a hospedar o diretório na info-rede. Desde sua criação, muitas instituições de pesquisa no mundo todo vêm colaborando com seus próprios arquivos.

É fácil menosprezar a importância de um projeto como esse, se pensarmos na nomenclatura biológica como um mero etiquetamento bibliotecário. Nas palavras de Paul Kirk, especialista em fungos e colaborador do projeto, “Não é possível entender a biodiversidade sem um sistema de comunicação”. Por exemplo, estudos na área de meio-ambiente e comportamento animal, e atividades de interesse humano mais imediato, como a agricultura e a pesquisa biomédica, mudam qualitativamente com o suporte de um sistema integrado de dados. Em sua última listagem oficial, de 15 de março de 2005, o Programa Catálogo da Vida conta com meio milhão de espécies sistematizadas. Uma fatia considerável da estimativa dos biólogos de cerca de 1,75 milhões de espécies conhecidas, em meio a até 12 milhões de organismos a serem ainda descritos, segundo o próprio Kirk. Outro projeto, com finalidade semelhante, é o Wikispecies, do mesmo grupo da enciclopédia on-line. A Wikipedia revolucionou o conceito de democracia na info-via ao abrir a redação dos verbetes para os próprios usuários, e vem fazendo o mesmo na catalogação da diversidade da vida.

Uma preocupação recorrente na identificação das espécies é a variedade de nomes populares, e os dois projetos contemplam sua utilização, ao lado do nome científico. No entanto, como a maioria das instituições colaboradoras são do mundo mais rico (onde, aliás, a diversidade biológica é menor), erros são esperados. É desejável, portanto, que um número cada vez maior de instituições de pesquisa dos países em desenvolvimento participem, colaborem, ou pelo menos critiquem os projetos de catalogação integrada. Se a comunicação da diversidade não for inclusiva, aí sim, tudo o que teremos são etiquetas de biblioteca, e não democracia da informação.

É natural levar vantagem, certo?

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 07/09/05

Decisões fortuitas e fatos insignificantes podem gerar conseqüências importantes e duradouras. Em sua autobiografia, Charles Darwin diz que sua mais importante viagem ao redor do mundo (em que vasculhou a costa brasileira e reuniu indícios para a teoria da seleção natural) dependeu “de uma circunstância ínfima (...) e de uma coisa tola - o formato do meu nariz”. Gerson - o Canhotinha de Ouro - brilhou no nosso futebol dos anos 60 e 70, com visão de campo e lançamentos precisos que fizeram seus companheiros de equipe, como Jairzinho, Tostão e Pelé, grandes artilheiros. Mas foi a atuação em um comercial de TV que imortalizou seu nome na forma da lei, a “Lei de Gerson”: o importante é levar vantagem em tudo. Gerson merece ser lembrado pelo que fez de grandioso, e, não, por sua ligação acidental com a lei da falta de caráter, mas nem sempre temos controle sobre os efeitos das pequenas decisões que tomamos (um tema espetacularmente tratado no filme de Tom Tykwer, “Corra, Lola, corra”).

Desvio de recursos e malas suspeitas são noticiadas hoje com uma novidade no Brasil, um pecado circunstancial do atual governo ou de seus partidos aliados. No entanto, além da lama sabidamente respingada na oposição, a popularidade e longevidade da Lei de Gerson derruba essa hipótese em definitivo. O caixa dois nas campanhas eleitorais é uma triste tradição, e precisamos de uma revolução cultural, tanto quanto trocar as raposas que tomam conta do nosso já pauperizado galinheiro. A ciência também tem sua equivalente da lei da vantagem, e, como a de Gerson, transcende as particularidades do aqui e agora. Segundo algumas teorias em voga entre os cientistas, “levar vantagem em tudo” pode ser uma característica intrínseca das interações humanas, um corolário da seleção natural em populações de organismos (as chamadas “estratégias evolutivamente estáveis”) ou até a própria lei da vida! Não escondo meu preconceito contra esses três níveis de aplicação da canalhice nas ciências naturais, mas, antes de criticar, é preciso compreender.

Darwin tem lá sua parcela de culpa no sucesso da lei natural da vantagem. A metáfora darwiniana da “luta pela existência” abriu caminho para uma série de equívocos, culminando no infeliz termo de Spencer, “sobrevivência do mais apto”. Se apenas o mais apto sobrevive, não é justo bancar o Dick Vigarista na maluca corrida pela vida? Darwin nunca quis dizer isso, mas o conceito pegou, embalado pelo individualismo da sociedade industrial. Sucesso reprodutivo diferencial virou sinônimo de competição desenfreada no mundo natural. Um desdobramento recente desse modo pouco generoso de ver a vida é a psicologia evolutiva (EP), que, entre outras pérolas, prega a capacidade inata que nós humanos temos de trapacear e evitar ser trapaceados. Nas palavras de John Tooby e Leda Cosmides, representantes máximos da EP, “debaixo de um nível de variabilidade superficial, todos nós partilhamos certas suposições sobre a natureza do mundo e as atitudes humanas em virtude de circuitos universais de racionalidade”. Traduzindo a fala pomposa de Tooby e Cosmides, agimos como agimos por uma dádiva (ou uma praga) da natureza, não por mera escolha. Perdoai os colegas faltosos, ó membros da CPI, pois eles não sabem o que fazem!

Os teóricos do espertalhão universal (ou seu oposto igualmente falacioso - o humano naturalmente moral) esquecem o componente histórico tanto de organismos quanto das relações sociais entre eles, a que chamamos contingência. Sim, há muito planejamento nas interações sociais, mas os planos se sobrepõe, e, no jargão das ciências cognitivas, os comportamentos observados “emergem” de atividades contextualizadas. Uma boa analogia é o planejamento urbano. Nomes de ruas podem seguir algum padrão, facilitando a vida de quem busca o endereço. Vejam, então, o caso de um bairro da região de Venda Nova, em BH. Algum amante da literatura decidiu dar às ruas nomes das grandes penas da língua portuguesa: estão ali imortalizados Humberto de Campos, Castro Alves, Camões. Outro, mais afeito às geografias, deu a outras ruas, aleatoriamente, nomes das grandes capitais do mundo. Como se não bastasse a curiosa mistura de literatos e cidades, um terceiro administrador (eu desconfio, com algum senso de humor) entrecruzou, em meio às fileiras de capitais, uma Rua Inglaterra, uma Rua Argentina e uma Avenida Universo!

As relações que se estabelecem nas várias sociedades de seres vivos seguem algo muito parecido, baseado na ações contingentes dos organismos - que podemos chamar de “atividade situada” - e na história particular dessas relações. Esse é o nível mais iluminador para entendemos o que acontece, e não um suposto elemento universal embutido na cabeça de cada membro da sociedade. A não ser, é claro, que queiramos responsabilizar a natureza pelas relações que estabelecemos uns com os outros, sejam elas lícitas ou ilícitas. Eu gosto de “Avenida Universo”. É um nome bem bonito, desde que todas as vias públicas não tenham esse mesmo nome, certo?

Vida de cachorro: clones e indivíduos

Beto Vianna - Jornal O Tempo - 19/08/05

Meu melhor amigo foi Zorro, um cachorro preto da raça dachshund. Como quase todos do seu tipo, Zorro tinha aquela carinha mascarada, contrastando o rosto heróico com pernas ridiculamente curtas. E como aconteceu com várias raças de cães ao longo dos seus 15 mil anos de convivência com os humanos, o dachshund surgiu com um propósito: esgueirar-se, com sua forma de salsicha, pela toca estreita do animal caçado, que bem podia ser uma raposa - daí “zorro”, na nossa irmã língua espanhola.

Além da conformação física, dizemos que também o comportamento canino segue prescrições de raça. Há uma demanda social contra o “uso” de pitbulls, rotweillers e outras feras, do mesmo modo que se proíbe o porte de armas e as pipas com cerol. Mas a consciência popular tem argumentos contra o determinismo. Assim como não falamos de diferenças raciais humanas (ao menos publicamente, e em tempos de correção política), criadores de cães lembram-nos que a conduta do cachorro reflete as vicissitudes de seu adestramento, e não o imperativo genético. Ou seja, a relação do homem com o melhor amigo do homem é mais um capítulo dessa antiga novela, o debate entre natureza e cultura.

No dia 4 de agosto de 2005, a novela canina ganhou contornos de minissérie, da história da linhagem ao episódio de uma só geração. Cientistas coreanos anunciaram na revista Nature o primeiro cachorro clonado, cujo nome é uma jóia de adequação e bom-humor: “Snuppy”, acrônimo de Seoul National University Puppy (cãozinho, em inglês). A partir do material genético de um galgo afegão, o Snuppy embrionário foi implantado em uma cadela da raça labrador. O filhote é cara e focinho da matriz genética, e não lembra nem de longe sua nutriz materna. Que lições podemos tirar dessas semelhanças e diferenças? Infelizmente quase nenhuma, se o que estamos querendo é saber antecipadamente o final da novela.

Espero que um parágrafo explicativo não desanime leigos nem irrite especialistas. Clonagem é a fusão do núcleo de uma célula somática (da pele, por exemplo) com uma célula-ovo cujo núcleo foi removido, e sua implantação em um organismo receptor, a “mãe de aluguel”. Como o DNA está no núcleo, dizemos que a informação genética vem do doador, e o papel do ovo anucleado ou do receptor seria secundário. Ainda que essa descrição esteja correta (e não está), ela reflete um dos maiores preconceitos do pensamento ocidental desde Aristóteles: que a mãe é apenas o repositório da verdadeira chama vital, e, a tal chama, uma prerrogativa masculina. Ao enfatizar a contribuição igual de ambos os genitores em organismos de reprodução sexuada, a genética desarmou esse chauvinismo, mas reteve uma de suas premissas: o DNA contém as instruções de montagem e o resto do maquinário segue as instruções. Como um clone tem o mesmo DNA do indivíduo doador, deveríamos esperar que o organismo resultante fosse uma cópia idêntica. Mas é isso mesmo o que acontece?

O problema é que a biologia de qualquer organismo, desde as mais elementares interações dentro da célula até a construção da personalidade (ou caninidade), é realizada a cada momento no percurso do desenvolvimento. Elefantezinhos continuam parecendo-se com elefantes, e elefantes não nascem de formigas, mas a história biológica de cada elefante e de cada formiga individual é única. Um cão “naturalmente mau” pode continuar a ser chamado assim (e colocado, junto com seu dono, em uma coleira), sem que isso implique determinação genética ou que sua condição seja imutável. Até defeitos genéticos são reversíveis, como sabe todo mundo que usa óculos, e problemas de educação podem ser persistentes, como tem demonstrado uma parte de nossa classe política e empresarial.

Snuppy não foi o primeiro mamífero clonado. A lista inclui ratos, cavalos, coelhos, o segundo melhor amigo do homem - o gato - e a pioneira ovelha Dolly. Dolly, a rigor, nem pode ser chamada de clone. É uma “quimera”, pois recebeu material genético tanto do doador quanto da célula-ovo (sim, também há DNA fora do núcleo). Quanto ao gato, a imprensa científica não escondeu sua surpresa ao descobrir que o clone possuía um padrão de pelagem distinto de seu doador genético. Mas isso só deve nos surpreender se continuarmos a ver o organismo como o resultado de instruções escritas previamente a ferro e fogo no genoma. Ao compararmos a história individual de Snuppy com a de outros organismos clonados, vemos que as técnicas precisam ser diferentes e os resultados também não são iguais. Isso porque tanto as linhagens (as ovelhas, os cães), quantos os indivíduos (Dolly, Snuppy), exprimem uma tensão permanente na história de todo objeto vivo: a tensão entre a conservação e a mudança. Sem a conservação, não podemos sequer falar de linhagens históricas. Sem a variação, não ficaríamos tão maravilhados com as regularidades observadas, e os cientistas teriam bem menos o que fazer. Não há teoria científica possível sem um mundo de irregularidades desconcertantes.