2016



Escola de sereias

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 08/10/16

Darcy Ribeiro dizia que, aos 14 anos, o índio está completamente formado em índio. Darcy toca num ponto importante, a diferença e a desvantagem do sistema educacional em nossa sociedade civilizadora: temos um trabalhão para formar nossos concidadãos e, depois de tanto esforço, nem todo mundo está “completamente formado”. O fracasso, sabemos, pode ser estrondoso. O caso é que nós, civilizados, vivemos batendo cabeça sobre o que deve ser a educação – quais os seus propósitos, como organizá-la, quem cuidará dela – a ponto de não nos decidirmos nem mesmo sobre que saberes o noviço deve aprender para se tornar um feliz membro da comunidade. Uma maneira de enfrentar o problema, bem conhecida dos brasileiros há séculos (aprendemos com a mamãe Europa), é enfiar goela abaixo da população um modelo de educação, seja através de uma instituição forte (o Estado, geralmente), seja utilizando os cada vez mais (ou menos?) eficientes meios de comunicação para convencer a todos sobre o que é certo e errado.

Nessa escola autoritária, vivida por nossos pais ou avós (depende da idade do leitor), o mestre-escola é um agente da lei, garantindo que os pupilos absorvam, calados, as normas, valores e técnicas autorizados por uma entidade acima da escola. Muita gente pode dizer: mas não é isso o que queremos? Respeito e tradição? Autoridade e disciplina? Pode soar bonito, mas será que queremos as consequências de uma escola assim?

Hoje, é mundialmente reconhecida a incapacidade dessa escola de formar pessoas que sabem e querem contribuir para a comunidade em que vivem, e não apenas apertadores de botão e cãezinhos obedientes. A sobrevivência dessa escola, ou seu ressurgimento, sempre vem de mãos dadas a algum grupo, instituição ou governo que tem interesse específico na idiotização do indivíduo como forma de controle. Não é à toa que o ensino vem passando por mudanças que ultrapassam o debate sobre conteúdos e práticas pedagógicas. Depois de séculos de palmatória e decoreba, muita gente entendeu que colocar mordaça no professor e, através dele, no aluno, não ajuda a educação a cumprir o que promete: conquistar sócios para a sociedade.

A escola sem partido, que se discute hoje no Brasil, soa atrativa pois promete mundos e fundos: ensinar o aluno a respeitar a família, a ser honesto e produtivo. Quem se encanta com a ideia, esquece que as formas de controle da escola autoritária respeitam tudo, menos os desejos do cidadão (ou de sua família).

Reza a Odisseia (ou assim aprendi nas aulas de literatura) que Ulisses, ao navegar perto das sereias, mandou a tripulação tapar os ouvidos, enquanto ele mesmo, amarrado ao mastro, curtia sozinho a cantoria sedutora. É uma escola assim que se diz sem partido? Um professor que não partilha a sua experiência, e alunos surdos para o resto do mundo? Não vejo salvação nessa viagem. Ou: de que adianta ensinar a pescar, se o peixe nem é de verdade?


O golpe dos Fifis

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 25/04/16

Há 42 anos, em 25 de abril de 74, os militares dão um golpe e assumem o governo de Portugal. Golpe? Depende. A golpeada era uma ditadura de mais de quatro décadas, e ditaduras não perguntam se queremos que elas acabem. Devemos nós – o povo, a burguesia insatisfeita, os militares, qualquer nós – abrir o caminho à força, na política ou na bala. Por isso não houve “Golpe dos Cravos”, mas revolução. Povo e exército nas ruas, e a democracia portuguesa e a soberania das ex-colônias africanas agradecem. Do lado de cá do Atlântico, um governo eleito foi deposto. Golpe? De jeito nenhum. O presidente se fingia de caçador de marajás e paladino contra a corrupção, títulos fabricados com a ajuda de uma mídia servil, enquanto abria o bolso público e lá metia a mão (sem molhar a de seus sócios políticos), caindo em meio a um processo de impedimento e na desgraça do povo. Golpes que não são golpes, por falta de alternativa ou pelo recurso legal do impedimento, acionado quando o mandatário é mandante de crime.

Portugal tem um episódio curioso em sua história, que nos faz refletir sobre os tons de cinza da usurpação do poder: e quando o golpista é ainda pior que o mau rei? Em 1927, uma revolta liderada pelo capitão-de-fragata Filomeno Cabral e pelo beletrista Fidelino de Figueiredo (por isso chamada “Revolta dos Fifis”) tenta derrubar a ditadura. Contra o desmando ditatorial, justifica-se a ação ilícita. Mas o que dizer dos Fifis? Filomeno tem uma folha de serviços prestados às causas mais infames que se possa imaginar. Primeiro, como golpista. Em 26 integra a facção conservadora do golpe que leva ao poder Gomes da Costa, tornando-se seu ministro das finanças. No mesmo ano, exibe seu pendor ideológico prefaciando a obra Viagem à Volta das Ditaduras, onde bajula o fascismo de Mussolini e a ditadura de Primo de Rivera. Após o fracassado golpe de 27, recebe como castigo o cargo de alto-comissário em Angola, que exerceu com tanta crueldade que revoltou os próprios colegas de farda, e foi demitido em 1930. Coroando sua lista de horrores, Filomeno governou o Timor por dois mandatos. No primeiro, comandou o massacre de 15 mil timorenses, a maioria não combatentes, entre velhos e crianças.

Como no dilema do Quixote, Filomeno era homem de armas, e Fidelino preferia as letras. Esteve no Brasil onde foi professor, na USP, de renomados lusitanistas, como Massaud Moisés e Antônio Amora, criador do Telecurso Segundo Grau. Fidelino deixou frutos por aqui. Em 1936, revela o lado nazista de sua literatura. Diz em um livro que a “brutalidade reanimadora” germânica opunha-se às “elites cultas e esgotadas” do liberalismo europeu. Bravo!

A história, essa professora generosa que só nos ensina o que queremos aprender, é enfática: para o golpe não ser golpe, basta o governo ser ruim. Mas acrescenta: os golpistas não podem ser ainda piores.


Riscados do mapa

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 12/03/16

Primeiro, fiquei entusiasmado: o Instituto Socioambiental lança o livro “Mirim: povos indígenas no Brasil” (2015), para crianças. Achei a ideia brilhante, fiz propaganda e comprei três exemplares. Triste decepção. O livro, bem escrito e lindamente ilustrado, perpetua a história da carochinha de que a única forma de ser índio é viver na floresta e falar uma língua originária. Tirando uma paginazinha sobre os Pankararu (e justo numa seção chamada “vivendo na cidade”, o que já diz tudo), o livro apaga a história e o presente dos índios do Nordeste e de Minas Gerais.

Onde estão os Pankararé da Bahia, os Canindé do Ceará, os doze mil Xukuru de Pernambuco, os Xokó de Sergipe, os Krenak de Minas Gerais e dezenas de outras etnias do sertão, do agreste, do cerrado mineiro e do vale do São Francisco? Que mal fizeram para serem escondidos pelo Instituto Socioambiental? O livro, destinado aos olhos curiosos das crianças de todo o Brasil, nunca soube e nunca viu. Nada sobre os povos que vivem fora da Amazônia legal e do Xingu, a não ser os Guarani, mais populares e politicamente relevantes para a intelligentsia nacional. Desde quando para ser índio é preciso falar a lingua original? (e por acaso alguém fala?). Trezentos mil índios mineiros e nordestinos, com suas culturas próprias (mescladas e dinâmicas como toda cultura) dançadores do Toré, frequentadores do ritual do Ouricuri, conhecedores dos poderes místicos da Jurema, desmancharam-se no ar em um livro que tinha tudo para deitar e rolar na diversidade dos modos brasileiros de viver. A parte sobre educação e língua materna é uma piada pronta e de mau gosto. Índios nordestinos, senhores estudiosos, não precisam aprender português, pois essa é a sua língua materna!

Não faltam antecedentes para a seletividade étnica do Instituto Socioambiental. A invisibilidade forçada é a história da política dos brancos para os povos indígenas dessas regiões e o motivo de sua atual situação, obrigando-os a lutar não só para sobreviver, mas para serem reconhecidos como etnias plenas. É irônico um instituto com um histórico de defesa da questão indígena, com tantos antropólogos trabalhando lá dentro ou ao seu lado, contribuir para a invisibilidade de povos indígenas. Irônico, mas não surpreendente. O grosso do pensamento indigenista no Brasil sempre teve esse caráter excludente.

O apagamento de povos inteiros, a manutenção do preconceito e da cegueira são falhas graves em um livro para o público infantil. Crianças do sul vão continuar achando que só tem um jeito de ser índio. Crianças do agreste e do sertão vão continuar a olhar para seus vizinhos “caboclos” com o desprezo de sempre. Torço para que o Instituto Socioambiental reconheça a bobagem que fez e recolha essa publicação ou que, ao menos, o MEC não adote nas escolas esse manual retrógrado de indianidade ideal. Nossas crianças merecem saber que o mundo é muito mais rico.