A construção da estrada de ferro Vitória-Minas marcou a expulsão dos Krenak de suas terras no Vale do Rio Doce, após séculos de massacres e “guerras justas”. Trata-se de mais um capítulo da nossa história de ordem e progresso: a criação de solos, matas e rios degradados, e a criação de gentes miseráveis, prontas para serem salvas pelas generosas políticas públicas de educação, saúde, emprego e moradia.
Ao ocupar, 100 anos depois, a progressista ferrovia da Vale, em protesto contra o assassinato em série do rio Doce, os Krenak tentam nos ensinar o óbvio: que catástrofes ambientais e sociais não são efeitos colaterais do avanço da civilização, mas produtos rentáveis da indústria. Fabricar rio poluído e fabricar gente pobre tem sido o grande negócio da mineração, sempre com caixa sobrando para manter política, justiça e imprensa do seu lado.
Uma sociedade moderna, próspera, não pode conviver com crianças descalças correndo soltas por matas virgens e rios limpos. Gente descivilizada sempre foi e continua sendo uma barreira para o desenvolvimento, palavrinha do agrado de todos. É certo que ultimamente inventamos o adjetivo “sustentável” para o crescimento econômico, o que não muda uma vírgula nos desejos e na prática de ampliar mercados, ampliar a massa consumidora para esses mercados, e de nos lançarmos como um câncer sobre as fontes de matéria-prima descobertas ou por conhecer. Afinal, pra que serve a tecnologia?
E então vêm os Krenak e sentam-se sobre os trilhos do desenvolvimento, ao que a Vale, sempre ciosa da moral e do civismo, responde que “... repudia quaisquer manifestações violentas que coloquem em risco seus empregados, passageiros, suas operações e que firam o Estado Democrático de Direito e ratifica que obstruir ferrovia é crime.” Em outras palavras, parece que ou combater o crime é um crime, ou o Estado não é lá muito democrático e muito menos direito.
É essa concepção integral do rio como entidade, “como ser vivo, vivificador”, nas palavras de Aílton Krenak, que, ao causar estranheza aos nossos educados ouvidos, põe a nu a verdadeira razão de termos desastres como esse, perpretado pela Vale e seus parceiros públicos e privados: a nossa ideia fixa de que o rio é um recurso natural, o rio-recurso, o recurso do rio.
Na língua Krenak, rio Doce é Watu. E nós, que nome damos ao rio? No título de uma matéria da Globo no site G1, de 15 de novembro de 2015, lê-se que os índios protestam contra a “morte do rio sagrado”, assim, entre aspas. Pois é preciso que fique bem claro para os leitores, que o veículo de imprensa não compartilha supertições sobre rios que vivem e morrem, sobre espíritos de rios, sobre rios sagrados. Como aprendemos na escola, rio é “commodity”, um bem a ser comercializado, consumido, e sua embalagem jogada na lixeira mais próxima. Afinal, o que vale é a boa educação. Duvido que ela nos leve muito longe, enquanto seres vivos.
Às vezes um patinho, ao sair do ovo, tem como primeira visão da figura paterna (ou materna), um ser humano. E às vezes esse patinho, no percurso de virar pato, age por toda a vida como se o humano fôsse, de fato, sua mãe (ou seu pai). Os estudiosos do comportamento animal dão a esse aprendizado o nome de estampagem. É como se, bem cedo na vida do bichinho, estampássemos uma imagem em sua mente, e ela se tornasse para sempre real. Sabemos que muitos patinhos conseguem desaprender essa idiotice, e também que nós, humanos, preferimos acreditar em certas histórias, principalmente as que escutamos desde pequenos.
Por exemplo, não vestimos bebês machos com a cor rosa, e achamos normal pensar que homens não gostam dessa cor, a ponto de enxergar em quem prefere rosa qualidades femininas. No entanto, é sensato pensar que os bebês não sabem disso. É um delírio imaginar que um bebê vai decidir sua orientação sexual em função da cor da roupa, pois, para início de conversa, bebês não são adultos em miniatura, a não ser na expectativa dos pais. Bebês não fazem sexo, não namoram e, na mais tenra idade, tampouco fazem balé ou jogam futebol.
Contudo, o milagre da estampagem acontece: ao saírem de seus macacãozinhos de cor apropriada, fêmea e macho tornam-se, ambos, jovens humanos com a estranha ideia de que algo na cor rosa tem propriedades femininas. E eu não conheço, até o momento, nenhum estudo da neurofisiologia das cores, da ótica ou da física de ondas, que sugira uma rósea natureza feminina.
Isso vale para outros domínios da existência, como o brincar. Quando o bebê vira criança, trocamos seu babador rosa por uma boneca, e o chocalho azul por um carrinho. E, num passe de mágica, ambos irão acrescentar, a seu já distorcido conhecimento do mundo, que homens não brincam de boneca. Haverá algo na manipulação da Barbie que contribua na maturação da sexualidade feminina e impeça o desenvolvimento de um macho funcional? Desconheço.
Nas disputas públicas das redes sociais, feministas deploram a sociedade patriarcal e acusam seus defensores de monstros perversos. De outro lado, machistas juram que a demanda feminista é anormal e, por alguma lei divina ou natural, homens são de fato pilotos azuis de fórmula 1, e mulheres são verdadeiras donas-de-casa-cor-de-rosa. Em defesa dos machistas, lembro que eles (e elas) não agem por malvadeza. Foram estampados assim, e, ao contrário dos patinhos mais espertos, não superaram suas estampas desmioladas.
Mesmo estampado, o machista não está desprovido de outros atributos intelectuais, e continua capacitado a enxergar o mundo à sua volta. Se em nossa cultura, homens ganham mais, têm mais poder, e não ajudam a cuidar da casa e das crianças, tudo contribui para o machista perceber a imoralidade da sua crença, e acordar de seu sonho estampado. E aí, talvez pare de se importar se seu filho que tem um pintinho está ou não vestido de rosa.
“Salò ou os 120 dias de Sodoma”, do cineasta Pier Paolo Pasolini, gira em torno do número quatro. A trama se passa na moribunda Itália fascista de 1944. Nos quatro segmentos do filme, quatro donos do poder (o banqueiro, o nobre, o bispo e o juiz) violentam dezesseis jovens (oito mulheres e oito homens), escudados por oito colaboradores. Quatro deles são soldados.
Em 25 de abril de 1974, cai a ditadura portuguesa com o empurrão decisivo dos militares, os “capitães de abril”. Dez anos antes, em abril de 64, os quartéis também haviam sido instrumentais, mas no caminho inverso, instalando no Brasil um regime ditatorial que pouco deve a Pasolini no bestiário de perversões carnais: torturas, assassinatos, sumiços, e para os povos indígenas, o suprassumo do horror, o genocídio.
Talvez eu abuse da mística dos números, mas penso que a simbologia de “Salò” ajuda-nos a entender uma diferença crucial entre aqueles dois eventos ocorridos no quarto mês do ano quatro: o papel dos militares.
Os militares da Revolução dos Cravos eram oficiais combatentes na guerra colonial. As reivindicações inicialmente corporativas, principalmente ligadas às condições das tropas no conflito, logo se estenderam à crítica ao regime, que incluía a solução política para a independência na África e, internamente, uma articulação com vários (e antagônicos) setores da sociedade portuguesa, numa pauta eclética que ia da reforma liberal à agrária, da redemocratização a profundas mudanças sociais.
O Movimento das Forças Armadas derrubou a ditadura de braços dados ao povo português, e reproduzia seu leque de interesses. Partidos de esquerda, como o PCP, o MDC-CDE, os vira-folhas socialistas e a própria direita contavam com capitães de abril em seus quadros, e o jogo aberto pelo fim da ditadura deu um início turbulento ao processo revolucionário. Entre os radicais estava o capitão Otelo Saraiva de Carvalho. Preso em 75, um ano depois disputava as eleições presidenciais com Ramalho Eanes, conservador, general do exército, e primeiro presidente democraticamente eleito após 40 anos de fascismo português.
Em abril de 64, o povo brasileiro não foi às ruas oferecer cravos vermelhos aos militares. E estes não se miravam no espectro político da sociedade (até políticos que haviam apoiado o golpe tiveram seus direitos cassados). Leis cada vez mais autoritárias calaram a vida democrática e, a exemplo do fascismo europeu, abriram caminho para todo tipo de negócios suspeitos que, da noite para o dia, enriqueceu (poucas) famílias e criou impérios mercantis. Veja as empresas de comunicação. É desses líderes subterrâneos, e não nos quartéis, que os oficiais brasileiros de abril recebiam ordens.
Na última cena de “Saló”, após servirem seus patrões no bacanal de corrupção da carne, os soldados dançam uma valsa. Os portugueses (que como nós, passam por dificuldades) não querem nunca mais ouvir falar desse fado.