2014



Voz do iguaçu

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 07/12/14

O melhor lugar possível para receber um evento dessa grandeza. Banhada pela tríplice fronteira, Argentina, Brasil e Paraguai, Foz do Iguaçu é palco da antiga história de marginalização dos povos guaranis. Foi em Foz que, nos quatro dias do Seminário Ibero-Americano de Diversidade Linguística (17 a 20 de novembro), autoridades, professores, cientistas, poetas, lideranças indígenas e representantes de línguas minoritárias da América Latina e da Península Ibérica se reuniram para olhar com seriedade para questão da diversidade linguística. O seminário foi organizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (o Iphan), em parceria com a Organização dos Estados Ibero-Americanos (a OEI) e a Universidade da Integração Latino-Americana. Sediada em Foz, a Unila é a primeira universidade bilíngue brasileira, e em vias de fazer do guarani (língua cooficial no Paraguai e no Mercosul) mais do que um rostinho bonito no currículo.

Ao lado de conversas preciosas nas muitas línguas disponíveis, ações importantes marcaram o seminário, como o reconhecimento, pelo Iphan, das línguas talian, asurini e guarani mbya como referências culturais brasileiras, passando a fazer parte do Inventário Nacional da Diversidade Linguística. Autoridades também se reuniram no evento, para trocar experiências e propor políticas conjuntas. Um fórum de professores da Unila, e sessões com relatos de experiência, deram voz à diversidade cultural e política dos presentes.

A diversidade da linguagem humana deveria encantar a todos. Infelizmente, não é bem assim. Há séculos, alguns de nós (vergonhosamente, também humanos) descobriram que a maneira mais eficaz de excluir, explorar e espoliar uma pessoa é romper a ligação umbilical entre seu modo de viver e o seu modo de dizer. A empreitada teve como resultado o desaparecimento de milhares de línguas, e, o que é mais grave, das relações humanas que essas línguas traduzem. Essa é a situação depauperada que vivem, hoje, milhares de povos no mundo, após cinco massacrantes séculos de empresa colonial e pós-colonial.

Na conferência de encerramento, o estudioso Bartolomeu Melià falou na “deforestación” (desmatamento) linguística das Américas. A cada ocupação civilizadora do espaço indígena, abre-se um deserto cultural, a imposição de um modo de vida a uma gente que se fez gente em um ambiente linguístico e ecológico próprios. Lembrando que o espaço original das línguas indígenas nunca foi isolado, ou fechado em si mesmo. Os povos americanos sempre mantiveram contato com as comunidades do entorno, falantes e ouvintes em outras línguas. Tal como na África atual, não é raro um indiozinho falar uma língua além da materna, pois cada língua particular é apenas um nó na grande rede de conversações que mantemos uns com os outros, tenhamos ou não um jeito diferente de dizer as coisas.

O português merece ter outras línguas pra conversar.


Minas sai do armário

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 18/09/14

Há muito tempo, Minas são muitas. É o que nos dizem os esqueletos milenares encontrados recentemente em Matozinhos. As ossadas, de um casal morto aos 60 anos de idade, somam-se às tantas evidências desenterradas há mais de um século, de uma presença humana extensa, prolongada e diversa na paisagem mineira.

A história da pré-história de Minas começa com Peter Lund, que vasculhou grutas, sumidouros e paredões da região de Lagoa Santa e fez aflorar três tópicos quentes no povoamento da América: a antiguidade das gentes originais; a convivência entre o humano e a espetacular fauna da “Era do Gelo”; e a relação dos primeiros habitantes com os índios de hoje.

A escavação de sítios como a Gruta do Sumidouro (dos primeiros restos humanos achados por Lund), Lapa do Santo (que nos deu os ossos do casal) e Lapa Vermelha mostra uma ocupação quase ininterrupta por mais de dez milênios e atesta modos de vida diversos. Alguns podem ter continuidade nas tradições atuais. Isso inclui a utilização de plantas da região, relações variadas com a fauna local (não só de carnificina), uma rica cultura material, que, além dos utensílios de pedra, inclui cestaria, cerâmica e expressões artísticas de todo tipo. Há até evidências comportamentais. O casal de Matozinhos, por exemplo, tem gerado dados preciosos sobre as relações sociais e as práticas de sepultamento, passadas e presentes.

Claro, a estrela da pré-história de Lagoa Santa é Luzia, descoberta na Lapa Vermelha nos anos 70, pela arqueóloga russo-francesa Annette Laming-Emperaire. O crânio de 11 mil anos da “primeira brasileira”, estudado por Walter Neves e sua equipe, revelou traços físicos surpreendentes, que aproximam Luzia de alguns povos africanos e australianos, mais que dos índios atuais. Na imprensa, o assombro resumiu-se à prova de uma presença humana anterior à da linhagem original dos povos indígenas da América. O mais importante, penso, é ignorado no discurso monotônico da mídia: somada às descobertas esqueletais em toda a América, a cara preta de Luzia não revela uma anomalia, mas sim a esperada diversidade étnica - pré-histórica e histórica - dos ocupantes nativos do continente. A despeito do genocídio continuado que enfrentam desde a colonização, permanecem mais diversas as línguas ameríndias que as dos conquistadores europeus.

A grande contribuição dos americanos para o mundo moderno foi domesticar, bem antes da colonização, plantas fundamentais, como o tomate, o feijão e o milho (a lista é quilométrica). Assim como estudos na Amazônia revelaram manejos ancestrais (da mandioca, por exemplo), drogas do cerrado mineiro (o pequi, o jatobá), encontradas em associação com restos humanos fósseis, podem apontar para uma antiga tecnologia de domesticação, adotada ainda hoje por índios e não índios.

Talvez a Tradicional Família Mineira de fato exista, mas não na Casa-Grande, onde fomos domesticados a enxergá-la.


O planeta dos macacos

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 01/05/14

Não sei quem é Daniel Alves, novo ídolo da branquitude solidária. Mas sei falar um pouco de “macaco”, e da relação dessa palavra com nossas muitas condições humanas.

Há 150 anos, Darwin e seu colega Huxley sugeriram, com poucas evidências, a irmandade direta do humano com os símios africanos, e daí, a origem humana na Mama África (parece que estavam certos: desde então, todos os dados moleculares, anatômicos, paleontológicos e geográficos fizeram justiça à tese africana). O problema é que a Europa e os EUA, liderando o terrorismo neocolonialista, queriam que todos entendessem isso do jeito errado. Com a ajuda de uma ciência nova em folha - a Antropologia -, venderam a ideia de que a ponte entre humano e gorila corresponde a uma escala dentro da espécie, e, você deve ter adivinhado, negros e outras gentes pretas na ponta inferior. Claro que Darwin não disse isso, e nem mesmo inventou o homem-macaco. A similitude do símio conosco era evidente há séculos no ocidente, obnubilado com a presença desses “híbridos” na África e na Ásia.

Dito isso, vamos pegar um navio de volta do Velho Mundo (pra mim, os EUA são velho mundo), e aportar em terras brasileiras. A floresta apinhada de macacos, e o contingente africano apresado para limpar privada das incompetentes gentes brancas, montaram o cenário simiesco dos tristes trópicos. Mas foi com a antropologia racista do século XIX que o Brasil, terra de descendentes de africanos e dos muitos índios (os selvagens) ganhou fama de planeta dos macacos. Daí os argentinos, que não têm florestas tropicais e sofreram uma política de branqueamento, nos chamarem de macaquitos, macaqueando seus primos europeus.

O que não entendemos ao repetir, na melhor das intenções, que “macaco é ofensa”, é o centenário golpe publicitário dos países ricos, ávidos por vender desenvolvimento e as manufaturas da indústria. Golpe construído sobre três mentiras, e com a ajuda de nossa intelectualidade colonizada: 1) o humano “veio” do macaco; 2) há seres menos evoluídos que outros; 3) civilização e desenvolvimento embranquecem, ou seja, “desmacaquizam” o humano.
Todo macaco é tão evoluído quanto nós. Não viemos “deles”, por qualquer ângulo decente de se olhar. O que se pode dizer é que somos mais parentes deles que, digamos, dos repolhos. A imagem do macaco curvado indo ao homem ereto, que ligamos à “evolução”, é enganadora sob qualquer aspecto. E devia ser óbvio, mas não é: povos com modos de vida distintos do europeu, ou que têm um passado de escravidão, não estabelecem, por isso, relações menos inteligentes com o mundo.

A apropriação por brancos espertalhões de um slogan falsamente antirracista, “somos todos macacos”, bem como o fricote de intelectuais contra esse abuso, são ambos frutos de uma cegueira construída, de uma jogada publicitária antiga. Somos todos macacos, africanos e humanos. Historicamente, não em solidariedade a algum “outro”.


No cravo e na ferradura

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 24/04/14

Amanhã, 25 de abril de 2014, Portugal celebra 40 anos do fim de uma ditadura que durou 40 anos. Qual o significado de transitar de um regime ditatorial para um democrático? Melhor perguntando, qual a diferença entre ditadura e democracia?

Gostamos do governo do povo. Mas o que conhecemos por democracia sempre funcionou na intermediação entre os representados e as decisões tomadas. No jogo de uma sociedade de proprietários, em que só estes avançam no tabuleiro, é esperado que a representação seja menos que representativa. E isso não é uma distorção do conceito grego original. A democracia direta ateniense era restrita aos “homens livres”, como na república dos coronéis ou na América de Franklin. Em 25 de abril de 2.414 anos atrás, a oligarquia de Atenas dá um golpe apoiada por Esparta (a ditadura militar da época), sem uma lágrima derramada pelo patriciado local.

A relação crucial é entre o Estado e interesses com bala na agulha, círculo que conserva no trono os atores de sempre. Universalizar o sufrágio democratiza a escolha dos representantes, mas, não, o mecanismo de decisão. É como o valor universal da fraternidade: útil apenas pros que são mais irmãos que os outros.

E a antidemocracia? Toda ditadura moderna serviu como antídoto a um revés no sufrágio universal. O que não é necessariamente ruim, pois pode romper uma hegemonia opressiva. E então chegamos ao século XX e aos fascistas, e vemos que “não necessariamente ruim” é eufemismo, no mundo real, para péssimo. Ao fascismo europeu corresponderam as ditaduras latino-americanas de direita. Não é à toa que o 1º. de abril, dia da mentira, seja o dia D do golpe militar no Brasil e do franquismo espanhol. Aprofundaram-se as regalias de uns poucos pela supressão dos mecanismos de oposição, não só as eleições, mas a manifestação pública da opinião, instrumento último e útil, quando o povo sabe que vai mal representado. Tortura e assassinato são só as cenas sangrentas do mesmo filme de terror. Sem querer atiçar ânimos anticomunistas (ultimamente ressurgindo das tumbas), isso é bem diferente de um povo do Caribe que se governa ostentando os melhores indicadores sociais das Américas.

O que o Brasil lamenta nos 50 anos do golpe militar é correlato simétrico de se comemorar os 40 anos do 25 de Abril português. Ditadura posta, ditadura morta. Desvios mentirosos do caminho democrático, que sabemos ser bem menos que reto.

Do lado de lá como do lado de cá do Atlântico, podemos (sim, hoje podemos) ir à rua denunciar o confisco do Estado por gente que já comeu demais. As jornadas de maio lá, contra a Troika do Euro e as jornadas de junho aqui, contra a privataria que vampiriza o transporte e outros serviços públicos. Gabriel Garcia Márquez disse, comentando o 25 de Abril, que “a situação de Portugal é parecida, com suas vantagens e perigos, com a de um país da América Latina”. Realista pra lá de fantástico.


O golpe, os índios e nós

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 04/04/14

Em 1556, nosso primeiro bispo, de gostoso nome Sardinha, foi devorado pelos índios caetés. Sardinha combatia os hábitos selvagens adotados pelos colonizadores, como o tabagismo e o gosto pela carne índia (não à mesa, mas na rede). Comer o prelado autoritário foi, então, um ato político. E o revide veio duro. Anos depois, o governador-geral manda trucidar os caetés.

Ditadura, nunca mais. Mas entre o repúdio ao golpe e as patéticas manifestações saudosistas, temos mais do que nos envergonhar. É longa a história de opressão física e cultural das gentes da terra e daquelas trazidas à força da África. Recentemente, um blog indígena perguntou aos membros da Comissão Nacional da Verdade (que investiga os silêncios da ditadura): “por que só tratam de mortos e desaparecidos não indígenas?”. A CNV incluiu o tema na pauta, mas a pergunta gerou surpresa.

Além de um imaginário da resistência povoado de lamarcas e sequestros de embaixadores, custamos a reconhecer o caráter político da luta indígena pela terra e por seus modos de vida. E muitos de nós ainda cremos em um país “desenvolvido e integrado”, tom que marcou a política genocida do regime militar. Gente pelada falando língua diferente (se ainda fosse inglês, né?), fabricando o próprio utensílio e catando aquilo que come em imensas áreas “não produzíveis”, não combina com “crescimento” na cabeça de muita gente.

Em 1967, o general Golbery publica “Geopolítica do Brasil”, propondo a integração para o crescimento. No organismo Brasil, as áreas “despovoadas” (onde vive a maioria dos índios) são a parte doente, que exige doses concentradas do remédio. Logo depois, a ditadura lança o Programa de Integração Nacional, que incluiu a construção de uma malha viária no norte, “reservada (...) faixa de terra de até dez quilômetros à esquerda e à direita das novas rodovias para (...) se executar a ocupação da terra e adequada e produtiva exploração econômica”.

O plano caiu sobre o índio como a bíblica chuva de enxofre. Seus resultados são responsáveis pelo genocídio dos anos 70 e 80, com órgãos como o Incra e a própria Funai favorecendo o massacre de aldeias inteiras, assassinato, tortura, escravidão e outras violências praticadas contra, afinal de contas, pessoas, não é mesmo? As frentes de expansão (colonos, madeireiras, mineradoras) sujaram as mãos, bem como funcionários do governo. Os índios tentaram se defender, migrando ou peitando as invasões, e já denunciavam, desde então, a barbárie. Por que, então, não escutamos?

A descoberta de campos de concentração indígena em Minas Gerais, durante a ditadura, com uma lista de mortes e maus tratos de arrepiar os cabelos, mostra que o terror não foi apenas subproduto do “sonho desenvolvimentista”. É desprezo congênito por quem vive de modo diferente. Assim como repudiamos a volta da ditadura, é preciso prestar atenção nas situações de violência que os índios vivem, ainda hoje.