2013



Erracismo

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 07/12/13

Nem toda teoria errada é racista, mas toda teoria racista é errada. Ou tem se mostrado errada em 300 anos de ciências humanas e biológicas no ocidente. Cada formulação racista dura o tempo que dura graças aos grupos que dela usufruem, mais que a uma cultura que lhe dê sustentação. E o revés de um argumento racista é sempre fulminante. Aí, jogamos o argumento na lata de lixo mais próxima, e seguimos a vida. Bom, é o que deveria acontecer se fôssemos espertos.

No século XVIII, Montesquieu ensinou que ir ao exterior é educativo, pois “saímos do círculo de preconceitos do próprio país e não estamos dispostos a assumir os dos outros”. Dada a eminência do filósofo, espanta, três séculos depois, ver quem faz o oposto: viaja com a mala cheia da velha mentalidade da Casa-Grande e traz, de souvenir, preconceito fresquinho aprendido no país rico (é rico pois não sofre de nossas crioulas incapacidades). É como se tanto tempo não houvesse se passado no pensamento científico ou da epopeia colonialista que botou canga nos afro-americanos. A equação que torna ruim tudo o que é preto continua congelada na imaginação, logo daqueles que frequentam as melhores escolas. Difícil de acreditar.

Há 200 anos, curtíamos a noção de que cada ser, da humilde ameba ao glorioso ser humano, dispunha-se em uma escada ascendente e imutável. Para o negócio da época - explorar e escravizar o outro - o mesmo valia para as raças: pretos embaixo, os brancos no topo da escadaria. Darwin bagunçou esse coreto ao mostrar que os seres vivos, tal como as estrelas da música do Roberto, “mudam de lugar”, e que evolução implica estabilidade enquanto espécie - a humana, inclusive -, descartando a ideia de raça mais evoluída. Mas o mundo imperialista não engoliu essa. Nas décadas seguintes, com a partilha europeia da África e a exploração do “quintal dos EUA” (nós), criam-se elaboradas teorias racistas, da craniometria (depreciando mulheres, negros e índios) à eugenia (melhoramento das raças) e aos testes de inteligência (nome curioso para uma asnice).

O resultado de tantos erros é conhecido, e hoje sabemos que humanos são farinha genética do mesmo saco: duas famílias africanas diferem mais entre si que minha família sueca e qualquer uma delas. Racistas de hoje são tão atrasados, que até isso conseguiram não entender. De posse da informação crucial de que as diferenças de condição (entre grupos, classes, povos, nações) não têm a ver com algum desnível congênito, mas são históricas, posicionam-se contra os ajustes que devemos fazer para reverter o quadro atual de pobreza, desigualdade e desrespeito.

Passou da hora de todos nós - racistas ou não - entendermos que as diferenças de riqueza e dignidade não são obras da sorte, mas foram talhadas com a ajuda de teorias racistas completamente desacreditadas. Errar é bastante humano. Mas errar contra os humanos, sabendo o que já sabemos sobre os humanos, não.


Livros, gente e praças

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 24/08/13

Há 11 anos, todo ano, respeitáveis escritores e um respeitável público se reúnem numa manhã de domingo, na praça da Liberdade. Na fila para pegar um autógrafo e prosear com os literatos, gente de todas as idades traz nas mãos o livro que acabou de ganhar de presente. Livro, de graça, na praça.

O projeto, idealizado pelo professor José Mauro da Costa em 2003, ganhou fôlego novo ao cair nas graças da lei Rouanet e, com patrocínio da Oi, ultrapassou a barreira montanhosa do Curral. Este ano, além de Belo Horizonte, vai ter Livro de Graça nas praças de Manaus (29 de setembro), Uberlândia e Uberaba (dia 6 de outubro, nas duas cidades). Para cada uma das três cidades, foram convidados 17 escritores locais e realizado concurso nacional para a seleção de mais três autores. Cada livro - produzido especialmente para o respectivo evento – reúne contos e crônicas tendo como tema, ou inspiração, o nome da cidade.

E isso é bom? Há quem diga que dar livro de graça não ajuda ninguém a crescer, é assistencialismo. Discordo, e me explico.

Abre-se um mundo de possibilidades quando escritores e leitores (mesmo os iletrados) reúnem-se num mesmo lugar, numa manhã de domingo, para se debruçarem em torno do objeto livro. Nesse espaço de convivência que é a praça, as pessoas têm a oportunidade de participar ativamente do universo da literatura. O livro, cultuado como patrimônio de uma elite letrada e que, que por ser privilégio de poucos, mais assusta que educa, ganha nesse espaço democrático uma função libertadora, manuseado por todos, visto e assuntado (e, quem sabe, lido) por gente de todo tamanho, cor e sabor.

O que torna excludente a educação é alimentar a crença de que as pessoas “não sabem português” e, em vez de sanar esse duvidoso problema, ampliando o acesso das pessoas aos textos escritos e falados de nossa cultura, acusar quem “fala errado”, negando a legitimidade de sua língua materna.

Digo, como linguista por ofício e paixão, que língua não se aprende na escola, mas em casa e na rua (ou na praça). Função da escola é dar as condições de manipular esse universo de meios e mensagens que é o texto. O texto escrito lança mão de recursos bem diferentes da língua materna, pois é linguagem produzida com tecnologia de ponta e, tal como a fala, pode tomar a forma de vários gêneros textuais: romance, poema, conto, mas também bula de remédio, placa de loja e anúncio de classificado. Leitura e escrita só são bicho de sete cabeças na propaganda da elite burra e emburrecedora, que quer ver a maioria da população longe das letras. Espaços como o Livro de Graça na Praça, que aproximam as pessoas do texto escrito sem constrangimento, cumprem esse rito prazeroso da educação, que também é, ou deveria ser, papel da escola.

É por essas e outras que estou feliz da vida por Manaus, Uberaba e Uberlândia juntarem-se a Belo Horizonte nessa fantástica fábrica de literatura e convivência.


Que se lixe a troika: um novo 25 de Abril português

Beto Vianna
Jornal O Tempo, 25/04/13

Dizem as más línguas (dentre elas, o português) que o fado é a expressão da alma lusitana. O “Fado da Mentira” traz os seguintes versos: Fiz uma cova na areia/ P´ra enterrar minha mágoa/ Entrou por ela o mar todo/ Não encheu a cova d´água. Eis aí um lirismo transbordante de choro e de sofrimento. Cantar o amor perdido, o amor infame, traiçoeiro, foi a tônica de todo fado que se permitia entoar na ditadura que perdurou ruins quarenta anos em Portugal. Pressentindo a alvorada do 25 de abril de 1974 - dia da Revolução dos Cravos - os portugueses mudaram de tom.

O chororô fatalista deu lugar a canções de mobilização e de protesto. Graves, ainda, no denunciar a falta da liberdade e justiça social da velha ordem, mas cheias de futuro e esperança. Custou muito ao fado sacudir tanta areia amontoada por quatro décadas e entrar nas ondas novas do Portugal democrático. Mas entrou. Nos anos 90, como se o destino quisesse vingar as velhas tradições, era o 25 de Abril que se via em maus lençóis, ignorado por uma juventude crescida no embalo do fast food, do recém-caído muro alemão, das maravilhas do neoliberalismo. Mercado único, livre circulação de gentes e capitais, moeda forte, o Euro. Como um sonho sebastianista, havia quem visse aí a oportunidade de recuperar, nas asas da quimera europeia, a grandeza imperial perdida. Infelizmente, nem tanto ao céu. Como dizem os versos finais do “Fado da Mentira”, Ninguém conhece no rosto/ O que nossa alma inspira/ A vida é tudo desgosto/ Mentira, tudo mentira.

Três países que ingressaram quase juntos, nos anos 80, na União Europeia - Grécia, Espanha e Portugal - vivem agora as agruras de se submeterem a outra trinca, ou “troika”, como é chamada: o Fundo Monetário Internacional, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu. Em dois anos de austeridade imposta pela troika - com o conluio dos respectivos governos - as perspectivas de gregos, espanhóis e portugueses são cada vez piores. Desemprego, aumento das desigualdades sociais, cortes em serviços públicos essenciais, tudo com a desculpa de se “arrumar a casa”, ou seja, pagar as dívidas e reabrir o especulativo crédito para movimentar mais uns trocados. Já vimos esse filme no Brasil. Mas nossos irmãos europeus botaram a boca no trombone, e a música incomodou ouvintes de além-mar. Em seu editorial de 15/04, o New York Times diz que, além das medidas não terem os efeitos pretendidos (“o remédio amargo está matando o paciente”), a crise agrava o descontentamento popular, sempre perigoso, na visão do jornal. Pois claro.

No dia 2 de março, a praça Marquês de Pombal foi engolida por um tsunami de 800 mil portugueses, que manifestavam seu descontentamento. Choro doído, como num velho fado lamurioso, mas tocado por punhos erguidos em protesto, como num 25 de Abril. O dia 2 de março fica na história como uma data que se fez outra, em que o povo - não a troika - é quem mais ordena.


Ferra-se cavalos

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 09/02/13

Não há melhor remédio para o preconceito que sofrermos o dito cujo na carne. José Bento Monteiro Lobato, apesar do que dizem os politicamente corretos, é um bamba da nossa literatura. Nós, leitores, não merecemos ter a sua boa prosa proscrita de onde quer que seja. E apesar do que dizem os politicamente incorretos, Monteiro Lobato foi, sim, um pernicioso racista (aliás, um racista ativista), e não só pelos padrões da época, a ponto do país campeão no quesito segregacionismo (os EUA) rejeitar a publicação de uma obra sua, justo por carregar nas tintas do ódio à negra gente.

O que poucos dizem, pois esse assunto é mal digerido tanto por corretos quanto incorretos, é que Lobato também lutou contra um preconceito. E nesse caso, seu afazer literário dá-lhe boas credenciais, pois a ignorância com que se batia Monteiro Lobato leva o nome de preconceito linguístico (no livro “Preconceito linguístico”, Marcos Bagno cita o escritor a rodo; perdoe se roubo dali umas tantas ideias).

No longínquo ano de 1924 (quando, segundo os gramáticos de hoje, ainda não se judiava da língua de Camões), Monteiro Lobato escreveu o conto “O colocador de pronomes”, uma crítica aos prescritores da “língua culta” e do “português correto”. O personagem-título, um certo Aldrovando Cantagalo, vive guerra sem trégua contra os usuários da língua, supondo que esses deturpam o “verdadeiro idioma” (veja como o texto é atual!), ou seja, o conjunto anacrônico e incoerente de regras embalsamado nos manuais de gramática. A figura ridicularizada por Lobato encontra-se personificada hoje por tantos e bem-pagos consultores de gramática dos meios de comunicação. Talvez por isso, tal como Aldrovando, e como compensação por sua canhestrice linguística, eles tenham esses nomes psicodélicos, como Pasquale Cipro Neto e Dad Squarisi. Essas pessoas, com medíocre compreensão da linguagem (por descuido ou, quem sabe, razões de mercado), despejam rios de preconceito sobre as variações do português brasileiro, confundem língua com ortografia, e, o mais grave, o fazem com toda a legitimidade e repercussão que a velha elite e a grande imprensa lhes concedem.

Se você acha que isso é puro preconceito meu contra os gramáticos, ouçamos o grande Monteiro Lobato. No conto mencionado, Aldrovando encasqueta com uma tabuleta que diz “Ferra-se cavalos”. Quer porque quer corrigi-la, botando o verbo no plural (como ensinam as gramáticas de antanho e de hoje), ao que replica o ferreiro: “V.S. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu”. Sabe o ferreiro, nem tanto o gramático, que cavalos não têm o hábito de se ferrar sozinhos.

Aldrovando veio ao mundo, diz o conto no início, “em virtude de um erro de gramática”. Também seu criador viveu um trauma com o “português correto”, reprovado, no exame para o Instituto de Ciências e Letras, em português oral!

Se Lobato não sabe português, e o resto de nós, humildes cordeiros?