2012

O rei mídia

Beto Vianna - Publicado em O Tempo, 25/10/12

Há muitos anos havia um rei, mau como todos os reis. Esse rei, de nome Midas, fizera um favor a Dionísio, e o deus retribuiu concedendo-lhe um pedido. O resto da história, a leitora ou o leitor devem conhecer: Midas quis mudar em ouro tudo o que tocasse. E o deus, brincalhão como todos os deuses, não titubeou em atender o monarca. Não apenas a comida, a bebida, as mulheres (e a filha) do desafortunado rei viraram ouro, privando-o de fome, de sede e de amor, mas o mundo parecia a Midas, de agora em diante, um só: ouro, que seja, mas, principalmente, um só.

A desgraça fictícia do rei lança sombras no nosso mundo, por direito, real, e a história de Midas só é fantasiosa em seus detalhes químicos (não é todo dia que vemos pessoas transformando suas filhas em ouro). Sofremos de um mal parecido, cada vez que tropeçamos em informações e sentimentos demasiado uniformes, repetidos, e, por isso, com brilho de incontestáveis.

O mundo monótono da informação massificada, mediado pelas empresas de comunicação e a serviço de interesses mais silenciosos, ganhou um aliado recente, embora mais arredio, com a explosão da internet e de suas filhas douradas, as redes sociais. Sim, a internet democratiza o espaço de conversas. E sim, ao contrário da tradicional mass media, há mais gente on-line com o direito de dizer, não só de ouvir. No entanto, observa-se um fenômeno igualmente reacionário, que tem sido explorado pelas corporações do mundo livre (entre elas, o oportunista braço da mídia), em que as pessoas veem-se magicamente felizes sentindo e opinando as mesmas coisas, reproduzindo convicções confortáveis. Tome, como péssimo exemplo, os preconceitos, os ódios à diferença, os julgamentos de costumes, que se alastram na rede como fogo em capim seco. Nesses casos, a “democratização do dizer” emburrece tanto ou mais que a velha atitude passiva do telespectador.

A vida acrítica nas redes tem elementos mais perversos que a ditadura da TV. Esta, bombardeando-nos com programas estúpidos e noticiários tendenciosos, ao menos invade só o momento da recepção. Como acontece com os livros (há livros tão ruins quanto a programação da TV), após ver, ouvir, ler, temos a oportunidade de debater com as outras pessoas. Esse é o momento da socialização, em que retramamos nossa cultura. Nas redes sociais, as opiniões são logo engolidas e cuspidas (é dizer: curtidas e compartilhadas) com pouca ou nenhuma mediação da conversa com gente real ou virtual.
Não sou pessimista em relação ao novo universo em rede, de que, aliás, participo com gosto. A lenda de Midas oferece uma saída quando Dionísio, cansado da brincadeira, conta ao rei que tudo pode voltar ao que era se ele se banhar nas águas de um certo rio. Quem sabe nossos deuses também se cansem de viver em um mundo só? Quem sabe a diversidade seja, daqui pra frente, recebida com a alegria que ela merece? Tudo é possível nessa nossa realidade.


Dizer, errar e mentir

Beto Vianna - Publicado em O Tempo, 27/07/12

Há uma razão para, como sói acontecer nos últimos 500 anos, a maior parte dos brasileiros limpar as privadas da menor parte: essa maioria não fala e, muito menos, escreve, o português correto. Fenômeno curioso, pois aprendi que todo falante aprende direitinho a língua-mãe, que, como diz o termo, é a língua falada por sua mãe (a mãe dele, não a do caro leitor).

Ocorre que, em oposição às línguas-mães brasileiras, inventou-se uma norma, o “português padrão”, levemente semelhante às línguas da elite. Codificada em manuais reguladores, a norma, desde então, deve ser sofridamente aprendida na escola, quando isso é possível. A prova de que isso nem sempre é possível é o número de “especialistas em gramática” ganhando rios de dinheiro na mídia, em cursinhos e em palestras para executivos, desvendando, para seletas plateias pagantes, os mistérios do bom português. Aqueles de nós que frequentaram escolas caras, volta e meia incorremos em deslizes de mau português, e mesmo admitindo o erro, condenamos como imoral esse atentado ao padrão. A massa de desdentados e remelentos, então, sequer sonha em ter acesso a essa ciência oculta, e a pena perpétua por incidir no crime é continuar presa no miserê.

Mas meu assunto aqui é quase outro. Enquanto temos crises de histeria ao ouvir e ler o português errado, pouco damos bola para o uso mentiroso da língua. Uma língua escrita e falada da forma mais impecável (o ladrão eficaz veste-se com esmero), usada para ocultar o que se diz e inventar o que não se diz, ou seja, manipular o leitor ou ouvinte incauto. Digo que essa língua é mentirosa (e, não, errada), pois quem a diz sabe muito bem o que faz. Essa língua surge nos nossos textos mais corriqueiros: bulas de remédio que usam o esperto auxílio dos verbos modais (“pode” haver efeitos colaterais... o remédio “deve” ser ministrado...) para tirar o cujo do fabricante da seringa, manchetes que torcem a notícia no interesse da “linha” do jornal ou da TV, e propagandas enganosas de todo tipo (e não falo só daquelas que confessam que são propagandas).

Acho isso triste, pois como profissional da linguagem, tenho obrigação de saber que diferenças de gramática são comuns a todas as línguas. O “inglês” não é o mesmo no discurso do rei ou na afrolíngua da negra novaiorquina (o próprio rei comete realidades diferentes ao falar para os súditos e na privacidade do leito real). Tal como o inglês, o português são muitos. Mas esse “conhecimento do especialista” não me ajuda a conversar com as pessoas. A maioria dos meus interlocutores, principalmente os bem-nascidos e bem-escolarizados, estão seguros de que “o português” é um patrimônio ideal, e qualquer arranhão ou desvio é moralmente inaceitável (e não adianta mostrar evidências em contrário).

Por isso tento aqui mudar de estratégia: se você quer uma língua saudável, uma língua que não mente não é ainda melhor que uma língua que não erra?


Gente bonita: a norma culta do bairro nobre

Pedro Perini-Santos e Beto Vianna -
Publicado em O Tempo, 12/05/12

Reclamar das limitações impostas pelo policiamento linguístico virou o esporte preferido de alguns fazedores de opinião congenitamente mal-humorados. Como não queremos cercear a liberdade de ninguém de ofender os demais, vamos tratar de um assunto bem mais afirmativo, que é a linguagem do apreço, do enaltecimento.As expressões que compõe o título deste artigo não foram expurgadas pelo politicamente correto. São termos corriqueiros que aparecem em anúncios publicitários, em matérias de divulgação de eventos e até no noticiário. Chamadas como “Megabalada na boate O Alpendre: só vem gente bonita” são ilustradas por fotos de pessoas jovens, brancas, bem-tratadas e com cabelos lisos. O recado é claro: bonito é quem é jovem, forte, branco e rico.

Em estilo semelhante, as imobiliárias e as colunas sociais categorizam os bairros mais ricos da zona sul da cidade como “bairros nobres”, ou seja, há bairros que acolhem moradores que são vistos e tidos como superiores aos demais habitantes da capital, pois, se há pessoas nobres, os demais, por extensão, são plebeus, certo? Compare esses termos com aquele outro, tão usado por nossos intelectuais sempre alertas ao bom uso da língua: “norma culta”. E quem não pratica a norma culta, é, por extensão, o quê? Não é necessário haver controle na entrada de eventos de gente bonita ou no acesso aos bairros nobres, selecionando quem pode e quem não pode participar dos ambientes especiais. A vivência diária o faz. Por exemplo, para que negras e negros sejam plenamente aceitos, esses têm que ser ainda mais charmosos e ricos que a média dos usuários habituais dos setores vips da sociedade. Devem ser motivos de um sonoro “uau, que corpo!”, sendo essa frase a expressão prosódica do desejo por contato erótico a ser relatado orgulhosa e sutilmente aos amigos e amigas, e acompanhado por generosas doses de um especial 12 anos qualquer.

Quem está por cima acha ótimo continuar nesse lugar. Palavras como “esnobe”, supostamente críticas daqueles que têm ou mostram ter bala na agulha, têm origem na falta de paciência com a mobilidade social. Dizem as más línguas que vem da abreviação inglesa s.nob (sem nobreza), título carimbado nos alunos de origem plebeia que receberam a graça de frequentar as sangueazuladas escolas britânicas. O mesmo vale para o convívio nos bairros da elite, outra expressãozinha danada de complicada. Nesse caso, a linha de corte é o rendimento e a aparente sofisticação comportamental. Ali os restaurantes têm nomes italianos e franceses, com cardápios redigidos nessas línguas, generosamente evitando que consumidores plebeus, incapazes de pronunciar corretamente o costumaz pedido de um Pinot Noir, 95, com bouquet épicée, adentrem ao recinto e paguem mico (para os outros).

É ótimo ter liberdade de escolha no uso da língua. Mas não custa nada abandonarmos as escolhas que ferem as outras pessoas. Isso, sim, é falar bonito.


Um imenso Portugal

Beto Vianna -Publicado em O Tempo, 25/04/12

Há seis anos escrevo neste espaço, nesta data, sobre o mesmo 25 de Abril português, a Revolução dos Cravos, que eu guardo na lembrança como uma joia de valor inestimável. E nestes anos, sempre tentei pegar carona no fato singular da Revolução para abordar outro assunto, algo novidadeiro para, ainda que desajeitadamente, justificar (ou legitimar) o gesto repetido de, a cada ano, celebrar o 25 de Abril.

Só agora percebi (ou muito melhor dizendo, o reencontro de um velho amigo, dos meus tempos de menino em Lisboa, me fez perceber) que a Revolução dos Cravos não carece de justificativa para ser relembrada. Nós, brasileiros e demais latino-americanos, temos motivo de sobra para, tanto quanto os portugueses - que se livraram de uma ditadura de 40 anos - e africanos - que se livraram de uma opressão ainda mais antiga - pensar com ternura nesse evento longínquo (no tempo e no espaço), nessa aventura de além mar. Os motivos têm sua expressão maior em uma atividade humana tão antiga quanto a invenção das fronteiras: o exílio.

São muitas as histórias de exílio em que o exilado, acolhido em terra estrangeira, encontra nesse novo lugar o alento que precisava para se fazer mais forte, para amar ainda mais (e portanto melhor lutar) pela gente de sua terra (às vezes pensamos que o humano é naturalmente xenófobo, que tem uma desconfiança natural de quem é diferente; é como se nos cegássemos frente a tantas e reiteradas evidências de que o humano sempre gostou de se mover mundo afora, conversando, aprendendo e fornicando com outros humanos, de todas as cores e gostos imagináveis). Portugal teve as suas histórias de produtivos exílios. O Brasil dos anos 50, uma nação ainda livre, abrigou a resistência portuguesa antifascista, os militantes que, banhados pelo sol dos trópicos, semeavam a queda de Salazar. E Portugal respondeu à altura, quando renasceu a liberdade por lá.

Thiago de Mello, o poeta que ofereceu sua voz para os direitos humanos, e hoje diz sua poesia em um alerta ainda mais profundo, pelo planeta, era adido cultural no Chile nos anos 60, e ali teve de ficar, por conta de nossa própria e brasileira ditadura. Quando o Chile democrático caiu, Thiago rumou para a Argentina. E dali (o exílio gosta de cruzar oceanos) para a Alemanha, a França... Cito as palavras de Thiago de Mello, no Caderno de Debates do Instituto Migrações e Direitos Humanos (v.1, n. 1, 2006), “No meu último ano de refúgio, foi Portugal que me cuidou. (...) Só em Lisboa é que tive atividade política, com Márcio Moreira Alves, Arthur Vianna, José Poerner, em atos promovidos pelos oficiais rebeldes da Revolução dos Cravos. E também lá foi que o coração me pediu para voltar, antes da anistia, ao chão amado, idolatrado, salve, salve. Onde fui preso, bem feito, ao descer do avião”.

Graças ao 25 de Abril, graças ao povo português, Portugal virou uma terra de mais de um povo. E isso não é café pequeno.


Pero las hay

Beto Vianna - O Tempo, 23/03/12, no debate: "Formas preconceituosas, como as que se referem
pejorativamente a ciganos e judeus, devem ser retiradas dos dicionários?”

Em seu “Os Estatutos do Homem”, Thiago de Mello diz: “Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas”. Para o poeta, que tem por ofício a palavra, liberdade é algo tão fundamental no relacionamento humano, que ultrapassa o registro escrito ou falado. É para ser vivido. E o que dizer quando o destino da palavra é ferir, humilhar, degradar a convivência?

Se atentarmos unicamente à função descritiva do dicionário, sou contra banir insultos, bem como devem ser mantidas a pornografia, a desgraça e a blasfêmia, doam a quem ouvir. Mas essa é só metade da história. O que me incomoda é a gritaria contra qualquer coisa que cheire a “politicamente correto”. Renomados formadores de opinião, gente que deveria ter mais cuidado com o que fala, usam suas poderosas tribunas midiáticas para denunciar a patrulha linguística, a chatice e a hipocrisia (da esquerda, por supuesto) que quer intervir na liberdade inalienável do indivíduo de ferir, de humilhar, de degradar. Compare essa liberdade com aquela acima, do poema de Thiago de Mello. Nem de longe é mesma palavra.

Quem propôs suprimir do dicionário definições insultuosas, ingenuamente se esquece de que o dicionário opera em um nível diferente (paralelo e, não, acima) de nossas escolhas vocabulares. Mas os que utilizam esse absurdo pontual para denunciar um complô linguístico do Grande Irmão prestam um desserviço pernicioso à convivência entre as pessoas, à normalização da diferença, que é o esforço que, enquanto humanidade, precisamos continuamente fazer.

A linguagem é um espaço de mudança. Palavras mudam quando mudamos de desejo, de preocupação. E o inverso também é verdadeiro: ao decidir usar certas palavras ao invés de outras, contribuímos para que nossos desejos e preocupações mudem. Muitos insultos dirigidos a negros e índios no auge da colonização, nos séculos XVII e XVIII, caíram em desuso e não são mais dicionarizados. E antigo não quer dizer pior. Ciganos e judeus eram mais bem tratados na Europa muçulmana de mil anos atrás que na Europa cristã dos anos 1930. As mulheres têm uma história ainda mais permanente e internacional de depreciação verbal, um vocabulário ofensivo que só em parte soa impossível aos ouvidos de hoje. E aos dicionários.

Em vez de denunciar um improvável expurgo das nossas palavras, devíamos (se queremos que liberdade seja algo “vivo e transparente”) nos esforçar bravamente, noite e dia, para que as palavras que ferem, as palavras que humilham, que degradam, desapareçam do pântano enganoso das nossas bocas. Estaremos, assim, contribuindo para melhores edições futuras, mais solidárias e conforme nossas escolhas, do Pai dos Burros.


Carnaval e praia em Beagá

Beto Vianna - Publicado em O Tempo, 15/02/12

Belo Horizonte, ou pelo menos suas classes muito médias, ávidas de arte e desfrute vanguardeiros, há muito se entristece de não ser nem uma coisa nem outra: de não ser o orgânico interior de Minas, fonte legitimadora da cultura da capital, e de não ser o Rio, Meca dionisíaca de mar, sal, sol e samba.

E há muito o carnaval é época de reacender essa tristeza. Cidade vazia dos moradores que rumam em bando para a rodoviária, e dali para o interior familiar, onde se revê a parentada da roça, onde se foge do carnaval (e da tristeza?) acampando e cachoeirando Minas afora, onde se pula o raizeiro carnaval de rua, engrossando os cordões da folia, os blocos sujos, os blocos caricatos, entoando as marchinhas de outros carnavais. Há aves mineiras migratórias que viajam pro Rio, brincando, na terra dos outros, o maior espetáculo da Terra. Há as que revoam para as praias do divino Espírito Santo, litoral sabidamente mineiro, se não geograficamente, ao menos de corpo, sundown e alma.

A Belo Horizonte do ano de 2011 (com antecedentes importantes nos anos anteriores, é preciso dizer) viveu uma reviravolta em tudo isso. Sim, a rodoviária continua se abarrotando de gente no carnaval. E agora de gente chegando quase tanto quanto de gente saindo. A cidade reencontrou o carnaval de rua, reencontrou o samba, a música, a alegria. E nem foi preciso beber lá fora (na folia carioca) ou aqui dentro (no interior festeiro): Belo Horizonte renasceu para uma cultura que sempre teve. Pois mineiro, apesar do devaneio diferentista divulgado por nossos políticos e literatos, é, antes de tudo, brasileiro. E Belo Horizonte, quando resolve parar de se esconder atrás das montanhas, é uma cidade do Brasil.

A cidade jardim reencontrou as marchinhas, da mesma cor e sabor daquelas entoadas nestas terras há tanto tempo (nos anos 30? 40?), a crítica social, a crítica política, de costumes (e que costumes!), o humor mordaz e a zombaria matreira, ingredientes básicos, tanto quanto o samba e a poesia, do grito de carnaval. À tradicional família mineira, aos nossos escorregadios governantes e acochambrados parlamentares, à nossa valorosa polícia militar, nada resta a não ser escutar o dedo carnavalesco apontando as mazelas: o folião mascarado desmascarando um sistema que dá motivo pra tanto riso.

Fantasiada, ou com pouca ou nenhuma roupa, lá veio Belo Horizonte descendo a ladeira, e as praças foram do povo, como o céu é do avião. Nem adiantou cercar, nem adiantou cercear. Ou adiantou, sim, pois quanto mais as fatias tacanhas da nossa sociedade fantasiaram motivos pra murchar a festa, só fizeram aumentar o cordão (tem cada vez menos gente se guardando pra quando o carnaval chegar): viraram musas. Como alguém deve ter dito por aí, quando o espaço público é um privilégio, ocupar é um direito. No auge da mais quente estação, só faltava Belo Horizonte ter praia.

Não falta mais.