2011

Nem a sanha arranha o carro

Beto Vianna - Publicado em O Tempo, 29/11/11

Álcool e volante não combinam. Vinho e queijo, sim. Lombinho com cachaça, também. Uísque com guaraná, champanhe e amor, tinto y verano, samba, suor e cerveja, idem. Nas descombinanças, a caça ao motorista alcoolizado pelas urbanovias do Brasil, organizada em blitze da lei, vem rendendo a diminuição de acidentes no trânsito, dizem as estatísticas. Mas persistem números terríveis, e esses a sanha blitzeira nem de longe pode arranhar.

Até 1999, as mortes no trânsito minguavam. Neste século, a violência volta a crescer, na contramão dos países ricos. Lá, “a postura hoje é estreitar as ruas para obrigar a população a usar o transporte público”, diz o presidente da Associação dos Pedestres de Belo Horizonte (APé), Arthur Vianna. Aqui, a Lei Seca ajudou, mas nada que freasse os efeitos do aumento da frota e de uma cultura e uma cidade feitas na medida para o carro nosso de cada dia. Uma cultura contra quem anda a pé, contra o ciclista e contra alternativas ao fetiche automotivo, como o bonde e o metrô. Mas não somos todos pedestres?

O motor cultural é alimentado por montadoras e companhias de petróleo, sedentas por desovarem seus produtos, empreiteiras ávidas em abiscoitarem grandes obras, o poder público disposto a agradar aos gregos da iniciativa privada e aos troianos eleitores, e estes (nós, mortais), deslumbrados com uma cidade que se curva ao carro. Viadutos monumentais e largas pistas para acelerarmos à vontade o carrão. Nem tão à vontade, pois essa arquitetura antes agrava o trânsito, por duas vias. Maior a pista, maior o fluxo, dando em engarrafamentos que destilam na cabeça do motorista uma droga mais insidiosa que o álcool: a fúria (não há lugar mais oposto à gentileza que à frente do volante). E, se o trânsito flui, abre-se outra caixa de pandora: quanto mais veloz vai o carro, mais rápido vem o acidente. Podíamos estender ao carro o olhar restritivo que dispensamos à arma. Trafegando em velozes manadas pela cidade, o carro ameaça a fragilidade de nossos corpos, por mais “cidadão de bem” que se ache o motorista.

Há um par de anos, perdi alguém que bem podia ter sido meu amigo. Na época do acidente, disseram os jornais: “morreu de delírio”. Penso que a rapidez com que ele se foi não tem no desvario o principal ingrediente, mas na mistura entre o carro, fazendo-nos correr mais que a cidade, e a cidade, erguendo cada dia mais obstáculos à nossa frente. Meça tamanha tristeza.


Para um feliz 11 de setembro de 2011

Beto Vianna - Publicado em O Tempo, 11/09/11

Hoje é pra comemorar. Há 400 anos, Granada tinha a maior população de mouriscos (cristãos novos) da Europa: 160 mil almas. A discriminação oprimia um povo de cultura riquíssima, escrevendo espanhol em grafia árabe e falando um dialeto que ainda se ouve na voz andaluz. Ao lado de outras minorias, marranos judeus e ciganos, a mouriscada deixou para nós, de presente, a arte flamenca.

A 11 de setembro de 1607, os paranóicos reis católicos, achando essa gente uma ameaça à segurança nacional, decretam sua expulsão de Valência, e logo de toda a Espanha.

Em 11 de setembro de 1973, no mundo da comunicação de massa, das liberdades democráticas e da pílula anticoncepcional, um governo eleito torna-se ameaça à segurança nacional. Militares chilenos, apoiados pelos EUA, bombardeiam o palácio La Moneda, assassinam o presidente e instauram a ditadura, legando 30 mil mortos e desaparecidos.

É 11 de setembro de 2001. O mundo globalizado, internetizado, assiste ao vivo o feio espetáculo das torres desmanchando no ar. Triste como 3 mil pessoas mortas é o acirramento da xenofobia, que pinta povos não-ocidentais como degenerados morais. Como os reis de 400 anos atrás, o Ocidente torna a evitar o Oriente como o diabo foge da cruz.

Hoje é 11 de setembro de 2011. O ano repete o dia, com seus “um e um”, duas torrezinhas de pé. Ano em que povos árabes se levantam contra seus fantoches, espanhóis do 15M soltam seu grito e nós, brasileiros, vamos renascendo também, para nossa dignidade há muito recolhida.


Inculta e bela: quem tem medo da língua?

Pedro Perini-Santos e Beto Vianna -
Publicado em O Tempo, 05/02/11

Linguistas por formação e ofício, sentimo-nos no dever de comentar sobre os ditos erros no livro de português que o MEC avalizou. Vamos explicar de forma simples para que o Clóvis Rossi, o Merval Pereira, o Arnaldo Jabor, a Vivine Mosé, o Milton Jung, o Alexandre Garcia, o Carlos Monforte, o Reinaldo Azevedo e o Cristovam Buarque entendam. O livro “Para uma vida melhor” fala sobre algo que acontece em todo país: as pessoas são julgadas pelo jeito que falam. Isso se chama preconceito linguístico e tem consequências graves. Vítimas de preconceito linguístico, muitas pessoas deixam a escola, abandonam consultas médicas e reivindicações trabalhistas e não conversam com os filhos e colegas de trabalho. Quando nos sentimos constrangidos pela fala, nos calamos e sofremos com isso. O termo “norma culta” é tão absurdo quanto falar de “bairros nobres”, por supor o oposto, e, a esse oposto, atribuir valores negativos.

Nada mais sendo variável (um problema neurológico ou emocional extremo), todo jovem aprende a variante linguística de sua família e comunidade. Esse é um fato linguístico. E escrita não é língua, mas um sistema normatizado de codificação que abarca uma ou mais variantes da língua. A escrita difere da língua falada nos mais variados aspectos, inclusive da variante padrão. A escola deve ensinar aos alunos um padrão normativo nacional, mas não há como um linguista sensato falar que erros de concordância (como “os bicho”) sejam ataques à gramática da língua portuguesa do Brasil. Isso é uma ocorrência linguística que faz parte do nosso uso corriqueiro.

O resultado educacional do preconceito linguístico aí está: crianças aprendendo que sua família e amigos “falam errado”, o que gera problemas para a vida toda. Considerar a fala espontânea, as variações regionais e pessoais, é o melhor caminho para amadurecer o uso do texto escrito e oral. As pessoas já se expressam bem, e os desafios escolares são ajudar os alunos a utilizar a variante padrão no contexto adequado, adequar o texto oral à forma escrita, aprender a interpretar e argumentar a partir da leitura dos textos e amadurecer a consciência de que a gente deve se expressar do jeito apropriado à situação comunicativa que se vive. Manifestações gramaticais prescritivas, como as que ocorreram na mídia, geram agressividade e aumentam a arrogância com que tratamos as pessoas que desviam do modelo padrão. Uma simples pitada de diferença no uso da fala, citada no livro, justificou uma violência verbal de dimensões histéricas.
Os intelectuais que nomeamos acima não entendem bulhufas de linguística. Erram na terminologia técnica e na interpretação do texto do livro, não conhecem a literatura científica, distorcem informações e não têm formação apropriada para falar sobre o tema. As consequências de sua fala são graves, pois eles são formadores de opinião. Além de errada, a opinião por eles divulgada é nociva.


A marcha da palavra

Beto Vianna - Publicado em O Tempo, 21/05/11

Linda viagem. No dia 7 de maio, da praça da Estação, subimos a Amazonas, torneamos a praça Sete, marchamos pela Afonso Pena (com paradinha na prefeitura) e seguimos pela João Pinheiro, para finalmente encontrarmos a praça da Liberdade, o palácio da Liberdade, qualquer liberdade, enfim, que nos permitisse a lei e a ordem. Ao lado de minha filha Ariel (do alto dos seus 15 maduros anos) e um mar de manifestantes tão belos e bravos quanto ela, eu estava ali para protestar contra uma lei que, para muitos de nós, muito tem de errada. Mas os brados que se ouviam na marcha soavam alucinados, e isso nada tinha a ver com o estado alterado dos marchadores. Ouviam-se palavras absurdas, como “pamonha”, “pamonheiro”, “vegetariano”, “manjericão”. Loucos nós, manifestantes? Não, louca a Justiça, que proíbe o próprio ato de manifestar; proíbe, ao invés do crime, o uso da palavra, criminaliza o usuário de palavras. Porque o crime, esse vai muito bem, obrigado, vicejando como nunca no terreno fértil da violência urbana, social, e regado diariamente por uma legislação - penso eu, e se é que isso se pode dizer - contrária à vida, à saúde e à paz.

Substâncias psicoativas - as que agem no sistema nervoso central - há várias, com os mais diversos usos para o bem e para o mal. Veja a cafeína. Ou os antidepressivos. Ou os anestésicos. Aquela encontrada na pamonha (sabe o que é pamonha?), erva usada há milênios, tem aplicações terapêuticas importantes e comprovadas. A planta é usada na indústria têxtil (as velas das naus de Cabral) e em rituais de diversas religiões há tempos e mundo afora. É claro, também é usada como fazedora de alegria. É aí que reside o mal? O álcool, em suas variadas e industrializadas formas, fonte de tanto sofrimento físico, emocional, é vendido sem a menor cerimônia. O cigarro também. Armas de fogo são glamourizadas no cinema e na mídia. Delas se fala a toda hora. Automóveis tomam o espaço das pessoas nas vias, aleijam, matam cotidianamente, e deles falamos até com orgulho. O que há de violência no manjericão (sabe, o manjericão?) é a própria violência. O tráfico, a repressão, as relações espúrias e doentias que são alimentadas em torno da existência mesma do crime. É como nos amores proibidos: a proibição não acaba com o amor (por vezes até aumenta) mas quanta dor evitaríamos permitindo amar.

O grito pamonheiro não incita ao vegetarianismo. O crime é desrespeitar a lei. Mas dizer-se contrário à lei não pode ser considerado apologia do crime, e muito menos um crime. O uso da palavra (se não do manjericão) deveria ser um direito acima dos direitos. Leis melhores há por aí. No artigo final dos Estatutos redigidos por um poeta amazonense, lemos: “Fica proibido o uso da palavra liberdade,/ a qual será suprimida dos dicionários/ e do pântano enganoso das bocas”. Se não se pode vivê-la, para que serve a liberdade? E, o mais terrível, a quem isso serve?


Cravos, rosas e jasmins

Beto Vianna - Publicado em O Tempo, 25/04/11

Geraldo Vandré virou profeta ao oferecer, a todos nós, “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores”, não pela metáfora floral cantando a liberdade, recurso afinadíssimo em tempos de Primavera de Praga, o maio francês, o “flower power” e (nem tudo são flores) nossa espinhenta ditadura, brotos de 68. O que me soa profético é que, caminhando do fim daquele século ao desabrochar do XXI, plantou-se um imenso jardim de movimentos sociais construídos de baixo para cima. Mas é preciso manter o olfato alerta. Estampar nomes de flor nas revoltas populares não garante que elas foram, ou são, populares. Em retrospectiva, a profecia deve ser lida com um grão de sal.

Portugal, 25 de abril de 74. Nesse dia, seguindo a canção, “soldados armados”, amados pelo povo, extirpam uma opressão de 40 anos. Nós, crianças, oferecemos cravos vermelhos à soldadesca, imagem belamente retratada num cartaz da época. A Revolução dos Cravos, que celebramos hoje, tem honesto cheirinho de alecrim, aplaudida pela gente portuguesa e africana, gente que, como eu, acha insuportável o odor dos impérios coloniais. Do lado de cá do século, a Revolução Rosa. Em 2003, manifestantes da Geórgia (famosa na canção “Back in the U.S.S.R.”, de uma banda inglesa) ocupam o Parlamento, clamando a saída do corrupto (mas eleito, diga-se) presidente Shevardnadze. Mas o tal povo tinha e tem aliados menos populares. Como demonstra a penosa luta dos separatistas da Ossétia do Sul (povo irmão dos ossetas nortistas, e, não, dos georgianos), a Geórgia conta com paisagistas profissionais na hora de escolher o arranjo: os Estados Unidos e seu departamento ultramarino, a Otan.

E, hoje, os jasmins revolucionários da África. Podados há um século, esses povos acharam o caminho da rebelião contra tiranias enxertadas pela ganância do Ocidente e pela praga do petróleo. A Tunísia toca a primeira nota da Primavera Árabe, e deita frutos no Egito, no Iêmen das fitas cor-de-rosa e na Argélia, onde tomba um antigo estado de emergência. Armadas de feicebuques e tuíteres, as redes árabes mostram-se de fato sociais, um tapa no preconceito que só vê ali submissão. Diz Noam Chomsky, o que os países ricos temem no norte da África não é o radicalismo, mas a independência. Por isso vemos na Líbia o velho jogo de forças, em que até a ditadura empalidece à sombra dos abusos externos.

E isso tem a ver conosco? Damos pouca atenção à cepa mourisca que cultivamos dos dois lados do Atlântico, não apenas na cultura, mas na disposição que temos de lutar, tanto quanto de sorrir e cantar. A nave Ibéria, desprendendo-se da Europa como no sonho de Saramago, semeou pelo mundo a mistura de essências árabe, cigana e judia, alma do fado lusitano, do flamenco andaluz, e, aqui, da toada rancheira plasmada em ventre índio. Somos ainda, ainda bem, ciganos altivos, batendo palmas e os pés com uma flor carmim - um cravo, uma rosa, um jasmim - entre os dentes cerrados. Olé, pá.


Lingua e escrita são moeda política

Beto Vianna - Publicado em O Tempo, Caderno Mundo, 27/02/11

Problemas de transliteração (traduzir entre dois sistemas de escrita) são café pequeno perto dos atuais embates no norte da África e Oriente Médio, onde se luta para desalojar os respectivos ditadores. Mas a discussão é boa, se lembrarmos que as mídias e a internet, quase sempre com um componente escrito (mesmo a TV), têm sido atores importantes desses movimentos sociais. Ao lidar com outros sistemas de escrita - como o do chinês ou do árabe - a transliteração é um guia da pronúncia original, e pode afetar a qualidade da informação.

Além disso, a gente esquece que escrita não é língua, mas uma técnica, vagamente precisa, de registro da língua (uma confusão que alimenta, no Brasil, o preconceito contra variações “populares” da fala). Assim, a transliteração tem que ter um pé na pronúncia original, e outro no ouvido do leitor, isto é, nas regras de escrita da língua do leitor. Isso também pode se tornar uma questão política.

É difícil achar cinco jornais brasileiros que concordem na grafia de Muammar al-Kadafi (ou Gaddafi, Qadhafi...). Tudo bem. Há diferenças consonantais no árabe sem correspondente gráfico no português, e decisões diferentes são válidas, se se mantiver a coerência interna. Recentemente, um repórter da Folha (24/02/2011) justificou o padrão do jornal pelo uso semelhante no “britânico Financial Times e pela rede Al Jazeera”. Mas, como se vê em “Jazeera”, nem sempre a grafia do inglês segue as nossas regras. Língua e escrita são moeda política, e é preciso consumir com cautela padrões vindos de cima, seja do país de origem (como a China e seu sistema pinyin) ou de potências do noticiário internacional.

Por causa da mulher

Pedro Perini-Santos e Beto Vianna - Publicado em O Tempo, 05/02/11

No seu discurso de posse, Dilma Rousseff referiu-se ao cargo que assumia usando aquele termo que vem dando pano pra manga: “Venho para abrir portas para que muitas outras mulheres também possam, no futuro, ser presidenta.”. E a pergunta surge e ressurge: é certo ou errado dizer presidenta? Nossa resposta é: está certo e argumento não falta.

Primeiro, todos entenderam. Não houve ambiguidade, desinformação, incorência ou impropriedade no uso do termo. Seria incoerente se ela dissesse que vai abrir as portas para que outras mulheres possam ser jogadoras de futebol, ou fechar as portas para outras mulheres que almejam a presidência.
Segundo argumento: não é a língua que muda, mas são as pessoas que mudam a língua. Mudanças ocorrem na medida do uso. E a entrada de novas palavras em uma língua pode ser bastante rápida. Não devem ter mais que 30 anos as expressões brasileiras deletar, x-frango e beijódromo, e elas funcionam muito bem. Mudanças nas marcações de gênero são mais lentas. Estima-se que a substituição do sistema masculino/feminino/neutro do latim, para o sistema masculino/feminino do português careceu de pelo menos dez gerações para se efetivar. E presidenta não é palavra nova nem um novo gênero: é palavra existente usada em gênero existente. O que é novo é o uso do gênero feminino nessa palavra em particular.

O terceiro argumento diz respeito à educação. Os veículos de comunicação têm, em geral, a necessidade de padronizar o uso de itens e formas gramaticais. Mas a língua tem outros usos. Certos comentaristas de gramática têm uma postura muito agressiva em relação às mudanças na língua. Isso não é nada bom. Resulta em um sentimento de baixa autoestima linguistica, apoiado no uso de gramáticas escolares normativas, tecnicamente falhas, dificultando as dinâmicas escolares.

Outro argumento: o uso de presidenta não vai esculhambar o barraco. Não vamos passar a falar eleganta nem estudanta. Faz sentido dizer presidenta como tem sentido dizer médica ou sargenta, pois botar a marca do feminino na profissão é usual quando mulheres passam a exercê-la. Nem toda língua é assim. Em francês europeu, diz-se “madame le professeur Julie Fougère” (ao pé da letra: senhora o professor Júlia Samambaia). Já os canadenses de fala francesa usam, como nós, o feminino: “la professeuse”.

Um contra-argumento ruim, que tem circulado por aí, é que a palavra presidente é formada por derivação do verbo presidir, tal como pedir/pedinte, impedindo o uso do feminino. Esquecem de dizer que o resultado é uma forma nominal, que em português sempre pode ganhar marca de gênero. Governanta também vem de governar, mas ganhou marca de feminino para se referir a uma atividade exercida exclusivamente pelas mulheres. Presidenta tem motivação ainda mais clara. O termo aponta para a primeira brasileira no cargo, dando dupla justificação à marca de feminino: o momento histórico e a luta pela igualdade profissional da mulher.
Por fim, a entrada de novos itens e novas formas é sinal de saúde e força de uma língua. O árabe, o japonês e o inglês primam pela eficiência na incorporação de palavras estrangeiras, adaptando-as às suas fonéticas e alfabetos particulares. Ganham assim mais recurso de expressão, mais versatilidade e abrem as possibilidades de escolha de seus usuários. Em vez de criticar o uso de presidenta, basta pensar que temos duas formas na mão. Que façamos a nossa escolha.

O sorriso do lagarto

Beto Vianna - Publicado em O Tempo, 22/01/11

O que digo ao longo deste texto me foi sugerido por duas cartas de leitor, publicadas no mesmo dia 18 de janeiro último, em O Tempo. Na primeira, o leitor se diz indignado com a TV Globo por conta de um final de novela eticamente incorreto. O leitor-telespectador denuncia um “... efeito socialmente negativo, devido à força da emissora, ao mostrar a vitória do crime e do mal sobre o bem e a moral”. A segunda carta também trata de uma indignação moral manifesta: a leitora-telespectadora assiste chocada, na mesma Globo, a presidente Dilma Rousseff e seus comandados esbanjando sorrisos em plena reunião ministerial (conta-nos a repórter em off) sobre as trágicas enchentes no Rio.

Desde o início gostei das duas cartas, assim lado a lado, pois elas são uma caricatura da troca de papéis entre os gêneros: o macho preocupado com o andamento da novela e a fêmea atenta ao noticiário nacional. Mas é preciso esquecer os gêneros pra atentar para a relação entre o público (qualquer público) e a televisão (qualquer divulgador massivo de entretenimento e opinião). O telespectador 1, que como todos nós está acostumadíssimo à moral teatralizada (das tragédias de Ésquilo a Hollywood) sabe muito bem que novela é novela, que tudo é encenação. Mas se permite emocionar, e, após limpar as lágrimas, se dá conta que o teatro tem uma função social, que ali se passa uma “mensagem”, e tanto pior (daí sua indignação) se a tal mensagem não se ajusta aos melhores valores que o telespectador 1 julga reconhecer na própria sociedade.

O telespectador 2 também está acostumado à moral teatralizada. Também se emociona com o que assiste e comunga, com o telespectador 1, distinções semelhantes sobre o bem e o mal. No entanto, ao ser avisado que aquilo que assiste não é teatro, mas um relato factual das tragédias humanas, põe de lado tudo o que sabe sobre quem produziu o relato, sobre o responsável pela “mensagem” e se concentra no show em si mesmo. Dilma às gargalhadas enquanto discute a morte de centenas de pessoas. O telespectador 2 não precisa entender (e isso foi dito na matéria) que naquela reunião discutiram-se outros assuntos. Não precisa entender que imagens e sons podem e são editadas e que, naquele caso específico, imagens das risadas governamentais e a parte crucial da locução da repórter - a reunião sobre as enchentes - foram sincronizadas.

Em suma, ao contrário do “consciente” telespectador 1, apreciador e crítico das tragédias ficcionais, o telespectador 2 está magicamente encantado pelo espetáculo. Alienado, para usar uma palavra fora de moda. A indignação pela imagem do mal está ali presente, mas o mal em carne e osso continua a sorrir para o espectador, ou sorrir do espectador. E assim seguimos vivendo ao vivo essa outra criatura da ficção, o Grande Irmão vislumbrado por George Orwell e reprisado em nossas casas à noite, na telinha da Globo. Uma calamidade verdadeiramente pública.