2010

Beatles, Assange e Ano Novo

Beto Vianna - Publicado em O Tempo, 31/12/10

Certos assuntos políticos são difíceis de desenroscar, pois chegam fantasiados até nós, sempre que nos falta espírito crítico ou sobra preguiça. Um meio de despolitização é a manipulação dos veículos de comunicação de massa, empurrados daqui e dali para disseminar gostos, opiniões e esperanças por nossa cultura afora. Tudo pode descer goela abaixo quando bem divulgado. Não é à toa que Vargas Llosa chamou os sertões de “fim do mundo”. Para esse sul-americano naturalizado europeu, qualquer lugar que se afasta do centro hegemônico é o fim do mundo. Dele, é claro. O Conselheiro foi tão mais sábio quanto desplugado do mundo de Vargas Llosa. Euclides da Cunha também.

Século passado, surge uma revolta contra a massificação, sob a bandeira da paz, do amor e todo o resto. O alvo era o consumismo e o anticomunismo histéricos, reforçados pela mídia no ocidente, inclusive no Brasil. Os Beatles, enlatados para consumo alienante, eram pessoas sintonizadas com a disposição rebelde de sua geração, e se posicionaram publicamente o quanto puderam (contra a guerra no Vietnã, por exemplo). Seu papel político foi espertamente distorcido, suscitando a desconfiança das esquerdas e, apesar da boa música, o apoio da indústria brega da diversão. O assassinato de Lennon, à beira das festas de fim de ano e alvorada dos anos 80, sofreu um trabalho de pasteurização da mensagem política, propagado em uníssono pela mídia: voltem pra casa que o sonho acabou. Essa contradição beatlemaníaca, qualidade política e estética vendidas como latas de salsicha, era a tônica da contracultura versão anos 60, pois os revoltosos eram filhos adotivos (nem tão diferentes assim) do sistema contra o qual tentaram lutar.

E eis que renasce a oposição à politica manipuladora em massa. Agora, são os meios de comunicação que justificam fins mais promissores. Do uso restrito até o dia-a-dia dos adolescentes, a internet tornou-se um comunicador de longo alcance ao alcance de todos. O que acontece com as tecnologias (e conosco) depende do uso que se faz delas, mas a configuração da tecnologia também deve ser levada em conta. Se a “rede” de TV divulga a partir de um centro, na internet os nós da rede são bilhões de usuários, que em um momento ou outro irão interferir, individual ou coletivamente, na qualidade da mensagem distribuída pelo sistema. É como as conversas que mantemos uns com os outros há milhares de anos, tecendo a rede maior que chamamos de cultura. Sim, há espaço para a hegemonia, para manipulação de mecanismos de busca e outros truques à disposição do poder instituído. Mas isso faz parte do jogo, mesmo na conversa interpessoal. O que muda é a força de propagação, que a comunicação distribuída em rede, confere a qualquer um: não apenas a governos, grupos econômicos e veículos de comunicação mas a mim, a você ou a Julian Assange. Estamos voltando aos tempos em que fazíamos, todos, a cultura.


Quando o amor acaba: o natural e o desumano no humano

Beto Vianna -
O Tempo, 20/11/10

O belo-horizontino Paulo Mendes Campos (hoje nome de pracinha carioca junto à rua Humberto de Campos, no Leblon) escreveu uma bela crônica lírica sobre o amor: “O amor acaba”. Mas o Paulo, sendo o Paulo, cheio de ternura, mas moleque, irrequieto, não ficaria satisfeito em louvar o amor piegas, ou chorar o amor perdido. O texto instiga leitora e leitor a percorrerem situações e lugares em que o amor desaparece, mas também ressurge, muda de jeito, de nome, muda até de amor. Diz o final da crônica-poema: “por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba”.

Mas que amor é esse, tão disposto a acabar? Amor não é para sempre (ao menos enquanto dure, como ensina outro poeta)? Penso que, nesse poema, amor é algo mais fundamental que o amor romântico (ou mesmo parental) que tanto valorizamos, até o ponto de banalização, nos libretos de ópera, nas novelas e nos bailões sertanejos. Essa nossa mania de tornar o amor sublime, cheio de mistérios, dificulta aceitar que amar é mais corriqueiro (e, por isso, mais importante) para nós, humanos, assim como, acredito, para outros seres vivos. Toda criança cresce cuidada por um membro mais velho do grupo. Cuidar da criança acende o amor do adulto e joga a criança em um mundo em que é natural ser amada e, daí, amar. Somos assim, e ficamos doentes se não amamos.
As manifestações de preconceito ativista, de pregação política do não-amor a alguns grupos da sociedade, nos ensinam a ficar desnecessariamente doentes. As últimas eleições foram pródigas nessa matéria. Ódio aos pobres, analfabetos, índios, negros, a grave questão de saúde pública - o aborto - rebaixada a disputa de rancores morais.

Eleitores descontentes com as urnas demonizaram os nordestinos, imaginando um Brasil dividido entre uma atrasada e iletrada zona vermelha ao Norte, e uma próspera e ilustrada zona azul ao Sul. Os números desmentem essa bobagem, mas, mesmo se fosse verdade, que doença é essa que nos faz desamar ativamente quem vive ou pensa diferente de nós? Sempre há um exemplo que supera a mais desvairada imaginação. A Universidade Mackenzie, de São Paulo, quer agora ter o direito de “ser homofóbica”. Entendido? A instituição, responsável pela educação de sei lá quantos mancebos, quer não apenas desamar os homossexuais (que isso é direito de qualquer um), mas pregar o desamor, um desamar militante, digamos. Tal como o adulto, a escola tem um papel cuidador em relação às crianças e jovens. Aqui, só consigo ver doença e, o que é pior, doença ensinada.

Se a ciência ajuda numa hora dessas, cito o biólogo chileno Humberto Maturana, que explica o amor como uma emoção fundadora do domínio social. Ele diz: “O amor é a emoção que constitui o domínio de condutas em que se dá a operacionalidade da aceitação do outro como legítimo outro na convivência, e é esse modo de convivência que conotamos quando falamos do social”. Não é? Acho até que o amor romântico - que cultivam entre si homem e mulher, ou, como não sabe a universidade paulistana, outras combinações de gênero - é alma gêmea do amar como fundamento do social. Mesmo quando o amor acaba. Eu mesmo vivo neste momento uma desilusão amorosa das mais perturbadoras em minha vida, e isso, do amor acabar, não me turva o desejo de amar. Pois nós, humanos (e outros seres vivos, acredito), somos assim. Naturalmente aptos para amar e acabar de amar, a cada minuto.


Que viva o touro!

Beto Vianna - Publicado em O Tempo, 04/09/10

Há pouco tempo, li em O Tempo um belo artigo de Eulàlia Jordà-Poblet, “A vitória da aldeia Catalã” (Opinião, 6.8), em que a autora serve-se dos gauleses de Asterix para ilustrar a vitória da proibição da tourada na Catalunha. Vitória do touro, objeto de nossa preocupação solidária. O caso é que toda vez que decidimos mudar ou preservar nossos hábitos, isso gera outras consequencias. Se o touro muda, mudamos junto com o touro. Nos quadrinhos de Asterix, o amigo Obelix repete o mote: “Esses romanos são loucos”. É uma crítica à nossa falta de paciência com a cultura alheia, com o modo de vida dos outros. Mas nosso próprio modo de vida - nossas “tradições” - também vivem na corda bamba, e podemos estranhar o que fazíamos no ano passado com a mesma intensidade. “Éramos loucos e não sabíamos”, diria Obelix.

Proibir as touradas num país onde essa atividade - assim se diz - “faz parte” da cultura serve na medida para essa reflexão, para discutirmos o que queremos e o que não queremos (continuar a) fazer. Quem se opõe ao fim da tradição tem sempre argumentos interessantes: a defesa da própria tradição; a defesa de uma atividade economicamente importante; e a defesa da liberdade (ou seja, de fazer o que se bem entende). Do lado catalão, o direitista Mariano Rajoy assumiu a bandeira de maio de 68 - É proibido proibir - ao defender a tradição toureira espanhola: “Estoy aquí apoyando la fiesta y a favor de la libertad; cada cual debe decidir de acuerdo con lo que cree conveniente”.

Mas quando a tradição não atende nossos desejos, como é o caso de nos indignarmos com o sofrimento de outros seres, o tradicional cai por terra: deixa de fazer parte da nossa cultura. E o que é mesmo “tradição”? O que fazemos há mais de duas gerações? Há 100 anos? O tráfico de substâncias ilícitas é uma antiga tradição mundial (nascido na época em que a substância tornou-se ilícita). Emprega milhões de pessoas e movimenta bilhões em dólares e recursos. Ainda assim não queremos considerá-lo parte da nossa cultura, nem lamentamos os empregos perdidos e o desaquecimento econômico decorrentes de sua extinção. A festa de peão de Barretos é de 1955. Já a lei brasileira que condena os maus-tratos aos animais (inclusive touradas e rinhas) é dos anos 30. Qual das duas é mais tradicional? (Para ser justo, a tortura humana tem milhares de anos, e ainda se pratica. É tradicional?). O disco de vinil, que não tem 60 anos, é taxado de obsoleto. E continuamos a usar o martelo, ferramenta de milhares de anos. Qual dos dois é moderno?

Tudo isso é assim pois não é o culto à tradição, o benefício econômico, ou o amor pela liberdade que nos faz decidir o que queremos. Ao contrário, são nossas escolhas emocionais que irão dizer, a cada momento, o que é tradicional, o que é economicamente saudável, e o que entendemos por liberdade. Se for só uma questão de escolha, fico eu do lado do touro. E de outros bichos.


O índio de mentira

Beto Vianna - Publicado em O Tempo, 13/06/10

Uma versão do famoso ato do apóstolo são Tomé (ver e então crer) tem sido praticada com entusiasmo cada vez maior pela grande mídia e seus espectadores. Nessa versão, o ato de ver (ou ler) exige a imediata crença no visto ou no lido. O curioso é que, se reprovamos em são Tomé a falta de fé, o pecado da nova versão é o excesso. Ou a falta de visão crítica. Mire-se no exemplo da revista semanal que atende pelo apropriado nome de Veja. A revista atingiu o cúmulo do neo-sãotomeísmo em sua matéria especial “A farra da antropologia oportunista” (edição 2163, de 05/05/2010). Não custa ver com os próprios olhos um trecho no início da matéria que, creia, diz assim: “Áreas de preservação ecológica, reservas indígenas e supostos antigos quilombos abarcam, hoje, 77,6% da extensão do Brasil. Se a conta incluir também os assentamentos de reforma agrária, as cidades, os portos, as estradas e outras obras de infraestrutura, o total alcança 90,6% do território nacional.”.

O texto é indubitável. Apresenta o fato assombroso, embrulhado em precisos percentuais, de que índios, quilombolas e camponeses (que pensávamos ser a porção marginalizada do Brasil), somados à cobertura de mata virgem cada vez mais reduzida (não me pergunte como obras de infraestrutura entram na conta), tomaram conta do país, numa épica revolução silenciosa. O que sabemos sobre 500 anos de massacres, subjugações e humilhações dos índios no Brasil é pura ilusão. Devemos crer que os verdadeiros brasileiros estão acuados e quase expulsos pela indiada ressurgida das cinzas.

A matéria segue dando asas a uma imaginação fértil e perversa, denunciando a “indústria da demarcação” que enche de dinheiro o bolso de antropólogos e índios. Numa redação, digamos, ousada, o texto desfila subtítulos que na minha terra seriam considerados maximamente preconceituosos: “Os novos canibais”, “Macumbeiros de cocar”, “Teatrinho na praia” (índios fantasiando-se de índios!), “Made in Paraguai”, “Os carambolas” (os supostos quilombolas!). Não há o que comentar. O visto fala por si.
Há questões graves aí: a matéria desrespeita a boa prática jornalística (o trato com os fatos e pessoas reportados); desrespeita toda uma classe profissional (os antropólogos); e assume a defesa clara (e invisível) dos interesses mais predatórios, que avançam insaciavelmente sobre índios e terras desde que somos Brasil. Tudo isso é muito sério mas quero frisar uma quarta questão. Crer à primeira vista só é possível quando a mídia mostra o que queremos ver. Por mais miseráveis e desarmados de suas culturas pelas frentes de civilização, o índio sempre continuou sendo índio. E isso nós não aceitamos! Como os demais povos que fizeram o Brasil e, bem ou mal, se abrasileiraram, queremos que o índio faça o mesmo. Nos roemos de raiva com a insistência do índio em ser índio, e, ao ridicularizá-lo, a Veja nos dá o meio de revidarmos.

Acredite quem quiser.


Cravo e canela: a criação da Universidade Afro-Brasileira

Beto Vianna - O Tempo, 25/04/10

Quando a indiada do Brasil avistou os primeiros portugueses, esses já monopolizavam, a partir da Ásia, a produção e o comércio mundial da canela e outras especiarias. Nascia o primeiro império global da humanidade, por obra e graça de Portugal. Das ruínas do império restou um patrimônio: a língua portuguesa, assim como o latim sobreviveu aos romanos.

Mas na Roma Lusitana fala-se desigualmente o português. O Brasil é herdeiro privilegiado, pelo tamanho e pelo decreto que nos fez quase unilingües, desalojando os falares indígenas do dia-a-dia da maioria da população. Africanos e asiáticos, por outro lado, conservam suas culturas milenares também nos (e através dos) idiomas nativos, e não se esquecem de quanto é branca a língua do branco. Variações no uso cotidiano de uma língua oficial (nacional para uns, estrangeira para outros) não diminuem a importância atual do português como elemento unificador desses povos: na educação formal, nas relações institucionais e nas ações de reerguimento de países pauperizados pela história. Um dos projetos em curso que fazem bom uso do idioma comum é a Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, a Unilab.

A Unilab é uma iniciativa do governo federal brasileiro com o aval da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a CPLP, e aguarda sua formalização no Congresso (aprovada nas comissões da Câmara, segue agora para o Senado), mas já conta com o campus brasileiro. A universidade terá sede em uma cidade cearense com o apropriado nome de Redenção, pioneira em abolir a escravidão já em 1883. A Unilab irá atuar, prioritariamente, nas áreas de agronomia, energia, formação docente, gestão e saúde, e a formação residencial no Brasil será completada nas universidades dos demais países, onde os alunos serão diplomados.

Nas palavras de Paulo Speller, presidente da Comissão de Implantação da Unilab, “Metade de seus cinco mil estudantes será brasileira, enquanto a outra metade virá de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, com forte apoio de universidades e governo portugueses”. Haverá uma integração da extensão, da pesquisa e da pós-graduação nas regiões e países de atuação da Unilab, e, no plano interno, uma integração ao Plano de Desenvolvimento Regional da região nordestina de sua instalação brasileira (o projeto lembra, em mais de uma qualidade, a “Universidade necessária” sonhada e buscada por Darcy Ribeiro).

No dia 25 de abril de 1974, a Revolução dos Cravos livrou Portugal de uma ditadura e marcou, na África, o começo do fim de mais de 500 anos de humilhação colonialista. 36 anos depois, está aí a chance de sentirmos novamente esse gostinho, quando países de língua portuguesa, dos cinco continentes, somam forças em projetos de integração solidária e promoção do desenvolvimento. Sabe bem a uma nova redenção, com o cheiro do cravo e da cor da canela.


A vez dos secundaristas

Beto Vianna - Publicado em O Tempo, 08/04/10

Março viu o movimento estudantil colocar nas ruas a Jornada de Lutas. Em Belo Horizonte a ênfase foi o passe livre nos ônibus, mas o movimento tem bandeiras mais amplas. Enquanto a velha classe política faz cabo-de-guerra para enfiar o máximo de recursos do Pré-sal em seus respectivos estados, estudantes de todo o Brasil querem metade desse fundo na educação, ou seja, para todos nós. Chamo a atenção para um setor estudantil muitas vezes subestimado como força política consciente e organizada: o alunado dos ensinos fundamental e médio sob a liderança nacional da UBES e, em nosso estado, da União Colegial de Minas Gerais. São os secundaristas.
Mais representativos da sociedade brasileira que os universitários, a massa dos secundaristas está naquela zona cinza a que chamamos “adolescência”, com contribuições para a política bastante particulares. O secundarista tem, tipicamente, de 11 a 17 anos, faixa em que cerca que 80% da população brasileira frequenta a escola, abrangendo mais estratos sociais que o contingente bem menor de universitários, reduto das classes altas. Daí a relevância do voto aos 16 anos, outra bandeira secundarista. Mas a qualidade da atuação política dos adolescentes é difícil de aceitar, pois depende justamente de nós, adultos, admirarmos com mais cautela os benefícios da maturidade.

Não há nada mais antigo que a queixa contra “a juventude de hoje”. Adolescentes são sempre mais anestesiados por modas passageiras, mais seduzidos pela sociedade de consumo e mais idiotizados pelas novas tecnologias que os jovens de uma improvável era de ouro perdida. A urbanização e a vida cada vez mais “plugada” que vivemos têm um papel na legitimação desses mitos, mas, exatamente por isso, devíamos olhar com mais respeito para os setores menos envelhecidos da nossa sociedade. Adolescentes não são simples vítimas (nem cúmplices) das vertiginosas mudanças. Ao contrário, estando imersos nesses novos modos de vida, exercem um papel de vanguarda cultural. Pouco habituados à ordem vigente, adolescentes de todas as épocas são os atores humanos mais à vontade na manipulação de recursos, saberes e técnicas, especialmente abertos à construção de uma sociedade mais solidária, seja qual for a tecnologia de plantão. Dito de outro modo, não entendem muito o fetiche dos adultos pelas novas tecnologias, pois não as sentem como novas, mas corriqueiras.

Talvez não levemos a sério os secundaristas por conta de preconceitos arraigados, ou, na melhor das hipóteses, por um ataque de uvas verdes: incomoda a nós, adultos, nem sempre plenos sexualmente, a incrível energia, o tsunami hormonal desses jovens. Uma reportagem recente sobre as passeatas secundaristas anunciava (em subtítulo) que “os estudantes aproveitaram para colocar a paquera em dia”. Mostrei a matéria a uma amiga adolescente e ela rebateu, fulminante: - Mas quando é que nós não colocamos a paquera em dia?