Palavrões em livros didáticos. Uma mistura curiosa, pois se nada é mais didático que um palavrão, seu nicho ecológico não pode ser o ensino formal. Ensinado às crianças por sisudos educadores, o palavrão deixa de ser palavrão, vira palavra. Seu encanto é a saliência, nascida do não-dizer. A atração das crianças pelas palavras feias vem daí, elas aprendem que tais palavras são proibidas, e por isso mais encantadoras que as outras. Sabiamente, as religiões fazem o mesmo: os termos divinos tornam-se impronunciáveis (não diga Seu nome em vão) e, portanto, mais maravilhosos.
Na conservadora Lisboa dos anos 70, lembro-me de como meus coleguinhas e eu nos deliciávamos com palavras proscritas. Já fui publicamente humilhado pela professora (de quem, aliás, morro de saudades) por conta de um palavrão. Em sociedades moralmente agrárias e católicas como a brasileira e a portuguesa, palavrão é o que a criança não diz na frente dos pais, dos professores, da autoridade. É o que se diz secretamente, só pro melhor amigo, e mesmo assim de noite, baixinho, debaixo das cobertas. Novamente por essa moralidade agrária, o palavrão também é associado à gente pobre: é da boca do vulgo (na senzala, na cozinha) que saem vulgaridades, embora, pela histórica associação da classe senhorial com as modas da metrópole, seja no salão requintado que as baixezas da fala se misturam às baixelas de prata.
Nas cidades cosmopolitas, o palavrão perde a saliência mágica e mistura-se às palavras mundanas. No Rio e em Londres, por exemplo, as duas palavras mais execradas nas respectivas línguas foram incorporadas ao falar cotidiano e viraram um coringa lingüístico, como o “pá” português, o “bah” gaúcho ou o “uai” mineiro. Outra, referente ao órgão masculino, enriqueceu-se urbanamente e tanto pode significar uma coisa excelente (do x), insatisfação (que x) ou surpresa (x!). Quem já leu Gregório de Mattos, mestre da flor do Lácio de 300 anos atrás, sabe o quanto isso é antigo, produtivo e literário na língua portuguesa.
Típico no pensamento ocidental é a associação entre palavrão e as desvalorizadas emoções, que devemos controlar pela racionalidade ou elevação espiritual. É o que se diz na hora da raiva. Ou do amor. Se quiser saber se uma palavra é feia, um bom teste negativo é procurá-la no jornal. Se encontrar, não é palavrão. Ao contrário de termos publicáveis que se referem à guerra, à fome, à doença e até à escatologia e ao sexo (para alguns, matérias-primas do palavrão), a má palavra não tira sua força do significado, mas do não-uso.
Oponho-me veementemente à inclusão de palavrões nos livros didáticos, pois sou um admirador desse rico vocabulário proibido, e torço por sua sobrevivência. Os moralistas que não gostam de palavras feias, por outro lado, devem fazer uma campanha para sua incorporação massiva aos livros didáticos (atualizados anualmente, claro). Seria o fim das grandes palavras.
A ilha venezuelana de Margarita abriga hoje e amanhã um encontro de cúpula tão importante que em vez dos 7 gatos pingados de sempre (os eternos G7 ou G8), irão se reunir pela segunda vez 66 chefes de Estado e representantes de governo da África e da América do Sul, a ASA. Uma medida de sua envergadura é a cobertura mínima da mídia. Debatemos, de preferência, profundidades petrolíferas e aviões franceses (ou americanos, suecos, o que seja), que tocam na fantasia de sermos o que nunca fomos: ricos, modernos e brancos. Com a “transferência de tecnologia” subimos mais um degrau em direção ao primeiro mundo, deixando pra trás nossas negras ou índias realidades.
Mas antes de voar em jatos, o primeiro mundo educa sua população, e seus loiros habitantes são tão altos e fortes por dispor de comida na mesa e um serviço de saúde que preste. É prioridade ter subsolos ricos? Repasse a história das Minas e me diga. Ao colocarmos os pés no chão, vemos que ASA pode unir produtivamente países depauperados, mirando justamente romper esse ciclo. E o momento é propício, pelo maior comprometimento de governos sul-americanos e africanos (empurrados pela maior participação de seus setores populares) com a solução dos problemas sociais e de dependência externa.
Como tecnologia, petróleo e poder bélico interessam mais, lembro que também nesses quesitos a reunião é proveitosa. Cuba pratica transferência tecnológica há muito tempo, fora da lógica mercantilista e cujos produtos - educação e saúde são exemplares - têm impacto direto no déficit social de países pobres. Mesmo sem Cuba, não faltam à ASA, e seu caleidoscópio de países, avanços tecnológicos intercambiáveis. Quanto ao petróleo, seis membros da ASA pertencem à Opep, sendo que Venezuela e Nigéria são dois dos maiores detentores de reservas e exportadores, elite a que se juntará o Brasil. Unidos, africanos e sul-americanos têm mais chance, dada a hegemonia dos grandes consumidores de petróleo, de privilegiar os investimentos internos de que necessitam. Por fim, desequilíbrios militares de fato preocupam. Agora mesmo a Colômbia tece um acordo para instalar sete bases militares dos EUA em nosso continente, atentado à soberania de que também sofre a África, por pressão econômica ou pela submissão de dirigentes alienados de seu povo. Acordos de cooperação mútua - econômica ou militar - são sempre benéficos a essas maltratadas regiões do globo.
Brasil e Nigéria são, de cada lado do Atlântico, os fiadores do encontro. Mas é patente a importância da Venezuela na disposição soberana que permeia os objetivos da ASA. Concordo com o articulista que disse que Chávez é uma “ameaça continental”. Mas não uma ameaça militar, e sim ao desprezo que sentimos por nossa história e condição (povos transfigurados, dizia Darcy Ribeiro) e à admiração que cultivamos pela cultura espúria que nos impede de andar com as próprias pernas.
Charles Darwin deu origem a uma reviravolta na história intelectual, e isso não tem a ver com a existência de Deus ou a origem do homem. É algo mais fascinante: a aceitação, pela comunidade humana (especialmente os cientistas), do fenômeno da evolução, ou seja, a história da diversificação dos seres vivos na Terra. Darwin, além disso, propôs uma teoria, a seleção natural, para explicar a evolução. É isso o que a ciência faz: propõe mecanismos explicativos para fenômenos aceitos pelos cientistas que, postos para funcionar, irão gerar o tal fenômeno. Se você aceita as coerências operacionais da seleção natural, ela irá explicar o fenômeno da evolução. Darwin foi impecável ao propor sua teoria. Não apenas aceitamos a evolução, mas o modo engenhoso e generoso de Darwin tratá-la mudou a atitude dos cientistas e de todos nós.
E o que a evolução, por um lado, e as teorias científicas, de outro, têm que ver com ateísmo, agnosticismo ou crenças religiosas? Essa é uma discussão não só inútil, mas enganosa. Ela confunde as pessoas ao confundir domínios explicativos. Ateísmo ou crença são posicionamentos humanos em relação à espiritualidade, e não elementos de teorias científicas. Se o fenômeno da evolução implica que repolhos e seres humanos descendem de outros seres, isso faz parte do fenômeno tal como descrito pelos cientistas, sem fazer referência a elementos estranhos ao fenômeno. Isso não quer dizer que a teoria é “agnóstica” sobre se uma divindade criou isso ou aquilo, pois, nesse caso, o cientista estaria dizendo que há algum aspecto do fenômeno que a teoria não pode explicar, e o objetivo das teorias é explicar o fenômeno! Quando um cientista encontra um aspecto do fenômeno que a teoria não explica mais, ele propõe outro mecanismo, muda de teoria. Assim fez Copérnico depois de Ptolomeu, Einstein depois de Newton.
Darwin ainda não foi totalmente digerido por nós, e duas barreiras nos impedem de saborear o naturalista inglês. A primeira é o dogmatismo de alguns cientistas, que transformou o legado darwiniano em explicações reducionistas da evolução. Ainda hoje, estudantes repetem nas aulas de biologia, sem nunca ter lido Darwin, que a “competição” causa a diversificação dos seres vivos. Como se organismos (ou genes) tratassem de competir por alguma coisa! A outra barreira é a absurda oposição entre darwinismo e religião. Alguns cientistas põem lenha nessa fogueira, dizendo-se ateus (o que é legítimo) e vinculando seu ateísmo ao darwinismo (o que é um contra-senso). Do outro lado dessa moeda, pessoas mal-intencionadas (pois seu objetivo é político, e não acadêmico) ocupam espaço na mídia mundial com o “criacionismo científico” e a “teoria do design inteligente”. Nem vale a pena mostrar a incoerência de chamar essas bobagens de “científico” ou de “teoria”. Jesus disse: “a César o que é de César”. Pois que César fique em Roma, e deixe nós, gauleses, em paz.
ILE-IFE, NIGÉRIA. Há 800 anos, Gengis Cã encomendou aos povos submetidos uma escrita para a sua língua, contratou letrados e difundiu idiomas espalhados pela Rota da Seda, facilitando a administração do maior império em terras contínuas que o mundo já viu, e não, como costumamos dizer, “semeando o terror”. Os mongóis nos ensinaram que governar, mais que impor a própria língua, é beneficiar-se da comunicação com os povos em contato: reunir para reinar.
Difundir e aprender um idioma é recurso para os mais diversos fins políticos, o que devia ser mais debatido nas aulas de língua estrangeira. Fala-se hoje em intercâmbio cultural, e as relações comerciais sempre são uma motivação legítima. O Mercosul promoveu o estudo de espanhol e português, proveito mútuo que ultrapassa o mero jogo de forças internacional (ainda que atribuições recíprocas de hermanos e macaquitos nos lembrem que não se trata de um mar de Rosas). Mas a cooperação não é a norma nas políticas de língua estrangeira, e a difusão das línguas européias modernas é semente e fruto da empresa neocolonial, ao lado do aprendizado da língua do dominado. Walter Rodney mostrou o papel da Aliança Francesa como braço lingüístico da dupla tarefa de explorar o trabalho africano e enfrentar a influência britânica, e a outra face da mesma moeda é ilustrada pelo sistema Berlitz, mais conhecido pelos livrinhos de viagem e o método de imersão. Graças à ligação de Charles Berlitz com o serviço de inteligência do exército norte-americano, o sistema foi usado por agentes disfarçados, sabotadores e outras figuras simpáticas na aquisição “sem sotaque” de línguas do sudeste asiático.
Felizmente, a recepção das línguas estrangeiras pode tanto assumir um caráter pernicioso quanto libertário para um povo. O dado promissor do português é que essa língua tem hoje, como principal doador, uma ex-colônia, teoricamente menos adoecida de imperialismo (diferente do inglês dos EUA e a cultura expansionista de que é herdeiro): nós. Claro, o “brasileiro” como língua estrangeira não será mais responsável só pelo atestado de bons antecedentes. Em países da África não-lusófona em que se aprende o português, não parece haver muita consciência, da parte de alunos e professores, de que se trata de uma língua com realidades históricas (de dominação externa) e atuais (de déficit social) semelhantes às do aprendiz. De fato, os mesmos problemas, da baixa auto-estima do aluno, desvalorização da língua materna e o irritante mito do “falante nativo”, à idéia de que os alunos estão ali para “subir na vida” (e não partilhar outros modos de vida), deixam o português brasileiro, ao menos na África, em situação idêntica à dos colegas europeus. O próprio Brasil é um belo reprodutor de mitos: chamamos de língua estrangeira a européia, e “dialeto” a língua africana! É duplamente vergonhoso se nós, passando o que temos passado, repetirmos o pecado de nossos senhores.
ILE-IFE, NIGÉRIA. O 25 de abril, data tão importante para os países de fala portuguesa, merece umas palavras sobre o acordo ortográfico, matéria excessivamente tomada por preocupações sobre a identidade nacional. Esse é um prato cheio para o discurso mitológico do “homem único”, ou do “brasileiro único”, o que dá no mesmo. Mas quem estuda as identidades reconhece que elas são, a todo tempo, constituídas, abandonadas e recicladas. Futebol e Carnaval misturam-se hoje na mesma feijoada nacional, não por serem marcas da brasilidade desde a aurora dos tempos, mas por terem recebido continuados empurrões históricos. E então chegamos à língua: só se instaura uma identidade por meio do ato político de dizer o nome de algo, que, no caso, é nomear a si mesmo. Se a língua precisa estar envolvida no ato de identificar (tente dizer algo sem ela), a recíproca não vale: não é inevitável que a língua seja o bastião da identidade nacional, a não ser por uma boa razão.
A razão encontramos no lema dos românticos do século XIX, “uma nação, um povo, uma língua”, que, convenhamos, tem um cheirinho de racismo. O Brasil recém-independente não fugiu à regra, e nossos intelectuais, para marcar posição, acharam por bem louvar o “português com açúcar” (termo de Eça, pois) como contraponto a Portugal. Mas não há um português brasileiro, cara e boca da alma nacional? Sim, nossa língua não é igual à da “terrinha”, mas isso é só uma medida de variação possível, pois dentro do próprio Brasil falam-se distintos portugueses. O importante é que foi esse louvar a língua, e não ela própria, que identificou o Brasil com o Brasil. Os antecedentes das dificuldades atuais de um acordo ortográfico remontam a essa época, em que brasileiros recusavam as normatizações da ex-metrópole.
Resta dizer o óbvio: ortografia não é língua, mas um sistema pertinente à escrita, que nunca dará conta das trepidantes variações linguísticas. Confundimos modos de falar e normas de escrever, e acusamos quem teve pouca escola (não bastassem as distorções da escolarização) de falar errado! É como se um lusitano viesse a Minas condenar quem diz “falá”. Discussões sobre o destino do português no jogo de forças mundial, e sobre quem é “dono” da língua, se a mãe Portugal (mas a língua nasceu mais ao norte) ou o gigante Brasil (tão descuidado de seus outros falares), desviam a atenção da questão própria ao acordo ortográfico, que é o fluxo editorial entre países de fala portuguesa. Nesse ponto defendo os defensores do acordo, pois os poucos itens modificados, se não reformam a ortografia (nem isso é possível, hoje), ajudam a reduzir a dupla publicação ou a incompatibilidade de títulos, como vem ocorrendo. Para os países africanos e o Timor, que publicam pouco e dependem de livros didáticos e outros materiais de fora, o acordo será mesmo uma bênção. E nós, em Pindorama, continuaremos a dizer “futchibóu” e “carnavau”, como sempre fizemos.