2008

Conservação e mudança do humano

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 11/10/08

A evolução orgânica tem ocupado merecido espaço no jornal. O tema de fato é quente, não só pela crescente afirmação da biologia como “ciência da vez”, mas pelo momento de dupla celebração: o bicentenário de Darwin e os 150 anos de sua obra maior, A origem das espécies. Mas como o assunto é suficientemente controverso (entre especialistas) e pouco debatido (na sociedade), as notícias tendem a ser espetaculares e superficiais, bastando, para sua legitimação, a menção à autoridade científica.

Cito a recente matéria “Evolução humana chegou a seu ápice, diz geneticista” (O Tempo, 10/10/2008), não por ser mais problemática que as outras, mas por servir na medida para o que estou dizendo. O texto apresenta o biólogo Steve Jones anunciado “o fim da evolução humana”. Mas essa é uma tese antiga de Jones, e, em outras versões, de muitos outros. Quem já ouviu falar do movimento eugenista, que, patrocinado pela Rockfeller Foundation, barrou a entrada de milhares de imigrantes nos EUA para não “degenerar a raça”, conhece uma das piores versões.

Jones não é eugenista, pois não advoga o “melhoramento da espécie”, apenas diz que tal melhoramento não ocorrerá mais. Ainda assim, a matéria peca em não situar o discurso do cientista. Ele não diz (nesse programa da BBC, ou antes) que a humanidade parou de evoluir, mas que o “mundo ocidental”, graças aos avanços tecnológicos, está permitindo a “sobrevivência do mais fraco”. Ele faz, inclusive, uma comparação interessante, ao dizer que a disseminação da AIDS foi tão contida entre os chimpanzés quanto será pelos povos africanos, pois ambos, ao contrário de anglos, saxões e europeus, são naturalmente selecionados para a resistência ao HIV!

Eu até admiro o amor de Jones pela divulgação da ciência, mas sigo inúmeros outros cientistas em não engolir essa história de “ápice evolutivo”. Isso não depende de ajuntar fatos, mas do que se entende por evolução. Para Jones, se os fracos procriam, não há seleção natural. Mas como diz meu amigo Chris Stringer (principal defensor da origem africana da humanidade), quem desse uma espiada nos europeus há 50 mil anos veria uma raça de seres altos, fortes e de cérebro grande ser desbancada por criaturas franzinas recém-chegadas da África: nós. Evolução não é ficar mais forte, mais inteligente ou (como se diz no jargão do laboratório) mais “complexo”. Milhares de espécies de parasitas evoluíram a partir de seres melhor equipados. Trata-se, antes, da conservação ou mudança do modo de vida, sempre em correspondência com o ambiente. Muda a relação, surge uma nova linhagem. Não muda, todas estão bem, obrigado.

Jones tem razão numa coisa. Humanos têm o incorrigível hábito de migrar por todo o globo e procriar desavergonhadamente entre si, sem ligar muito pra raça, religião ou preferência política do parceiro. Isso cria uma estabilidade evolutiva - um “fluxo gênico” - mas cria outra coisa, também: a convivência incessante entre povos os mais variados, partilhando, desse jeito, seus modos de vida. Nada mais promissor.


A diferença entre repressão e educação é vital

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 26/09/08

A lei seca é uma bela lei. Rigorosamente cumprida, pune quem deve punir, sob o sábio princípio de diminuir o furo da peneira para nunca sair de mãos abanando. E só pelo fato de existir, a lei reduz o número de acidentes de trânsito, ao desmotivar um importante personagem: o motorista entorpecido pelo álcool, sem o reflexo ou discernimento necessários para atender a essa complicadíssima demanda motora e emocional que é o ato de dirigir. Passada a euforia da estatística positiva, aprendemos com a lei seca e seus resultados, pois se a repressão falta ou diminui, o “elemento bêbado” retorna, como se tudo fora como dantes. Ao interferir em um sistema complexo - é o caso do trânsito -, combater um fator causal não garante que ele vai andar do jeito que queremos. E o que é mesmo que nós queremos? Se é diminuir a violência, temos de assumir que o sistema tem outros componentes assustadores, além de gente embriagada: pistas e veículos de alta velocidade e uma incessante e perigosa interação entre motoristas e pedestres com vários graus de entorpecimento, e não só por conta do álcool.

O motorista-bêbado compõe estatísticas negativas por sua relação com a bebida e não pela circunstância do trânsito, uma atribuição de responsabilidade moral nos discursos oficiais e nos relatos jornalísticos e de opinião pública. O slogan da via de mão-dupla (popularizado no “se for beber, não dirija...”) não disfarça a reprovação social do motorista enquanto bêbado e, não, enquanto motorista. Se o que eu digo cheira a propaganda de bares-restaurantes-e-Ambev, acrescento que, de fato, essa é a questão. Quem lucra com a bebida e está contra a lei, demonstra que, ao menos, entendeu bem a coisa: menor consumo, menor lucro. Essa turma sabe o que quer. E nós, queremos o quê?

Às vésperas da eleição municipal, sabemos que um prefeito se reelege (ou elege o sucessor), não melhorando a qualidade e o alcance da educação (de um jeito que vivêssemos melhor uns com os outros), ou, pra ficar no assunto, humanizando o transporte público e coletivo, mas investindo em modernidades: avenida, viaduto, túnel, recapeamento, alargamento e duplicação de pista. Melhorar o fluxo dos carros é (pensamos) uma melhoria. São modernas as “linhas verdes”, vias de muitas pistas e de trânsito rápido. É moderno o fast-delivery, o home-delivery e o drive-thru. É moderno gastar 5 minutos do Centro aos Confins. E não culpe o governante-candidato: nós queremos isso.

É curioso, ou triste. Uma criança de 2 anos, dando seus firmes primeiros passos de humano, terá uma vida muito diferente se sua circunstância for uma aldeia remota ou Belo Horizonte. Aqui, se não for contida (em sua proverbial curiosidade) no andar por onde o terreno permite, cedo ou tarde irá topar com um motorista, bêbado ou sóbrio (um cidadão de bem) em alta velocidade. Não terá nem tempo de aprender a viver de outra maneira. Ou de tomar uma boa cachaça, se fizesse 18 anos.


Pecados da língua

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 20/06/08

A onda de xenofobia anti-indígena que tomou conta do Brasil é compreensível. Nossas elites cultivam um nacionalismo peculiar, e volta e meia descobrem ameaças que servem na medida para propósitos bem menos dignos. Veja as defesas, à esquerda e à direita, da língua portuguesa, contra estrangeirismos de todo tipo. Agora, por exemplo, mobilizam-se forças e recursos para a reforma ortográfica que, argumenta-se, irá fortalecer nosso patrimônio na economia lingüística mundial.

Costumamos ser menos patriotas em relação às barreiras que estabelecemos dentro do próprio quintal. Segundo o último Ethnologue (o catálogo lingüístico internacional), falam-se no Brasil 200 línguas, o que, se não torna o país campeão em diversidade (é baixo o índice de falantes) dá-lhe um honroso 10º lugar em números brutos. São umas 180 línguas nativas (uns 150 mil falantes) e, pra não dizer que só falei dos índios, Libras, japonês, italiano e alemão são faladas, cada uma, por centenas de milhares de brasileiros.
Acontece que, oficialmente, aqui só se fala o português, um desastre para quem, por conta disso, é dificultado o acesso a serviços públicos, jurídicos, e outras burocracias. Mesmo usuários do português sofrem com a política lingüística. Tente passar em um concurso público utilizando a expressão “nós vai”. Essa é uma forma corriqueira em muitas variantes do português do Brasil, mas falar assim é falar errado, e não adianta nós, lingüístas, batermos o pé (se é que nos importamos com o mundo real).

Preconceito oficial, sendo oficial, não é preconceito. Você pode parar na cadeia se discriminar alguém pela cor, religião ou preferência sexual, mas é perfeitamente admissível (e obrigatório, em muitos casos) penalizar um brasileiro que não utilize o “português padrão”, mesmo que a maioria da população não domine esse precioso idioma. É claro, você pode perguntar se a “variante” de que falo não é, simplesmente, fruto da má educação. Ao que só posso rebater com três incômodas contra-perguntas: a) em que norma divina está registrada a variante correta do português (para a utilizarmos, com tanto rigor, contra seus não-usuários)?; b) onde foram parar os ideais de universalização da educação, proclamados por nossa elite condutora, desde o Império?; c) se não vamos mesmo universalizar a educação formal (e seu filhote, o português padrão), sua alternativa, ou seja, a valorização das culturas locais, tão na moda, é só para inglês ver?

Apesar dos avanços nos últimos governos - menção honrosa para Lula -, a população pobre (que, sabemos, é a maioria) continua duplamente penalizada: recebe a pior educação e, de outro lado, é barrada nos salões privê do português correto (que, sabemos, é onde está o dinheiro). Nacionalismo e patriotismo seriam palavras melhores se significassem inclusão dos brasileiros de carne e osso que aqui vivem, tenham olhos puxados, cabelos pixaim ou gramáticas populares.


Raposas da serra

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 28/05/08

Educar é uma bela atividade humana, embora nem sempre edificante. Afinal, o ladrão competente absorve as lições de seu ofício, e, durante séculos, grandes cientistas aprenderam e ensinaram que o sol gira em torno deste planeta. O mesmo podemos dizer do recente noticiário sobre o relacionamento estremecido entre índios e outros representantes da sociedade brasileira. Nos últimos meses, temos aprendido que índio é sinônimo de atraso econômico, e, na pior das hipóteses, uma ameaça à soberania nacional. Mas como puderam os decantados heróis de José de Alencar e Santa Rita Durão, reconhecidos habitantes originais do Brasil, ser transformados, do dia pra noite, em vilões da nação? Uma resposta é a esperteza de gente que espera (e com todo o direito: este é um país livre) auferir seu lucrinho e aumentar sua rendinha abiscoitando o rico solo em que vivem esses índios. Essas pessoas descobriram que, para cumprir sua digna missão, e em complemento ao uso da força bruta (ainda eficaz, mas meio fora de moda), nada como uma sólida educação.

As disciplinas mais concorridas nesse processo educacional têm nos ensinado que: a) os Yanomami nunca existiram (foram inventados por cientistas europeus para facilitar a invasão da Amazônia); b) ONGs, missionários, ativistas ambientais e antropólogos são, no todo e nas partes, agentes infiltrados na floresta em nome de desígnios entreguistas; c) não há razão plausível (a não ser por inconfessáveis motivos) para abandonarmos quase 2 milhões de hectares de terra nas mãos de um improdutivo bando da idade-da-pedra, quando empreendedores da agricultura e mineração do século XXI se dispõe, em troca apenas do direito de posse, a produzir riqueza para o Brasil e para o mundo; d) finalmente, é imoral e inadmissível que os peles-vermelhas ameacem cidadãos de bem com suas flechas, tacapes e bordunas, enquanto o Governo Federal assiste a tudo impassível, paternal e benevolente com os selvagens. Aos inimigos, a lei!

Essa educação, que opõe atraso a progresso, estrangeiro a nacional, índio a não-índio (ou “falso índio”) é duplamente sábia, pois esconde que interesses privados, ainda que “nacionais”, nem sempre coincidem com os do país, ao mesmo tempo em que imputa, a quaisquer atos violentos dos índios, a dimensão de agressão à nação e à justiça. “Impunidade!”, como se não tivéssemos exemplos bem melhorzinhos na nossa branca sociedade.

Quando estivermos finalmente educados para essa pujante realidade (embora, repito, não necessariamente edificante), poderemos descansar a consciência tranqüila no travesseiro, sem culpa maior do que haver defendido o Brasil das graves ameaças à sua soberania. Externas e internas, pois não é verdade que, ao insistir numa identidade própria (mesmo portando esses aculturados shorts de nylon e camisetas do Flamengo), o índio condena a si mesmo a viver como um estrangeiro, girando em torno de nossas terras?


Não acenderão agora!

Beto Vianna - O Tempo, 16/05/08
(Debate: Foi acertada a decisão judicial que proibiu a “Marcha da maconha”?)

O movimento pela independência do Tibete extrapola a questão local e é apoiado pelo “mundo livre” com bela cobertura da mídia. Repudia-se a repressão às manifestações e multiplicam-se os atos noutros cantões, na esteira dos Jogos Olímpicos. Mas sob a ótica do governo, os protestos no Tibete são ilegais, pois, oficialmente, aquilo é território chinês. Nós não concordamos com isso, não é? Não concordamos que um tibetano seja impedido de se manifestar contra a ordem vigente. O caso é didático, pois dia 4 último a Justiça proibiu a realização da “marcha da maconha” em oito de 13 capitais brasileiras, inclusive Belo Horizonte. Duzentas e tantas outras cidades do mundo colocaram a marcha nas ruas com o objetivo de promover o debate sobre a descriminalização da Cannabis.

Claro, a independência de um país é diferente do estatuto legal de uma planta. A primeira é uma mudança política profunda, que nos últimos 200 anos (se tanto) tem escalado para uma aprovação quase universal. Já a maconha é uma substância de uso milenar, com propriedades psicoativas, tal como a nicotina, o café e a cerveja. O consumo, aceitação e até institucionalização dessas drogas variam horrores segundo a cultura e a época. A particularidade da maconha é que, em nossa sociedade, muita gente considera seu uso um problema de saúde moral e, portanto, tanto é errado provar quanto aprovar - a tal “apologia das drogas”.

Se a maconha é caso de saúde pública, como proclamam os defensores da repressão, não devíamos tratá-lo como tal? Ou seja, debatendo? É com jovens fumando escondidos dos pais (e estes dos filhos) e da polícia que a sociedade amadurece, e quem sabe equaciona um problema de saúde pública? Está em jogo uma legislação que criminaliza o uso e o usuário, e uma parcela da sociedade, por mínima que seja, que tem outra opinião. A marcha não foi proposta para incitar ninguém a se drogar. Sugere, antes, que o sistema vigente é falho; que o tráfico, a violência e a desinformação são os responsáveis pelos problemas da maconha e, não, suas propriedades psicoativas; que a sociedade faria melhor em opinar e ouvir, e então estaríamos melhor preparados para lidar com o usuário (em vez de tratá-lo como um pária), e este melhor preparado para lidar com a substância. Não duvide que a rede que lucra com a criminalização está rindo à toa com a censura. É no bolso deles (e na vida destruída de várias famílias) que mexe o debate.

É tristemente irônico que os problemas considerados associados ao uso da maconha, como o tráfico, a violência, a dependência e qualquer fraqueza moral dos usuários, persistam, até prova em contrário, neste sistema que defendemos contra a marcha: um sistema em que a informação é objeto de condenação pública. Made in China.


Abril bate à porta dos caminhos

Beto Vianna -
O Tempo, 25/04/08 com o título “Revolução dos cravos”

Os sufis dizem que a história (pois tudo faz parte de uma mesma unidade divina) não nos ensina coisa alguma, não aponta caminhos. Traduzindo esse pensamento de longínquos desertos para nossa mineirice, o mundo é um grande pasto, com propriedades delimitadas (mas cambiantes), e as porteiras estão aí, à espera de quem se dispuser a abri-las.

Hoje comemoramos 34 anos da Revolução dos Cravos, e a idéia de que há “ensinamentos da história” merece, com renovada sabedoria, a reprovação dos antigos mestres ascetas. Além de livrar os portugueses de uma longa ditadura, o 25 de Abril contribuiu para a independência das colônias da África. Essa é a experiência particular de Portugal, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, com repercussões geopolíticas importantes. Mas há outro aspecto, que podemos chamar de “universal”. A pergunta aqui não é que rumo tomaram esses países, se ficaram pobres, felizes ou socialistas, mas o que se tornaram. Uma resposta é que essas nações entraram, em 1974, no clube do universo contemporâneo, em que se torna menos corriqueiro, e mais assombroso, haver povos dominados por outros povos. Mais que defender uma posição, tento entender como nós, hoje, dizemos que o mundo é (o que equivale a dizer como o mundo sempre foi, daí sua universalidade). O fenômeno colonial torna seus personagens, ao mesmo tempo, incongruentes e anacrônicos: países que vivem em outros países (por submissão ou ingerência), e espasmos de um passado mais brutal, menos “civilizado”, aprendido nos bancos de escola.

Curiosamente, essa imagem é contrariada por nações de ponta, como os Estados Unidos, França, Inglaterra e Holanda. Em pleno 2008, esses países estabelecem, com seus “territórios ultramarinos” (que gostinho de antigo tem esse termo!), uma relação que hoje apenas sonhamos existir num filme, anacrônico em si, de capa-e-espada. Os EUA tipificam a inconformidade com maior assombro, por sua enorme influência em nossa cultura (”responsáveis por grande parte da alegria deste mundo”, diz Caetano), e, como ex-colônia (ainda que, lembra Darcy Ribeiro, de europeus transplantados), por transmutarem rapidamente a doutrina libertária de Jefferson & co. em um grande negócio expansionista, com possessões nos quatro cantos do mundo. Dizem que o povo de Samoa, de Porto Rico e do Havaí aprova a dominação, mas esse é mais um aspecto de algo que já mencionei linhas atrás: a inconformidade é sistêmica. Dominados e dominadores são faces de um mesmo atraso (na ótica de hoje), assim como consideramos atrasados brasileiros e portugueses setecentistas.

Os Jogos Olímpicos, quando os povos do mundo congregam-se em saudável competição (deixando entrever, novamente, o lugar das porteiras), são um belo momento para os defensores da cultura contemporânea solicitarem aos EUA, França, Inglaterra e Holanda (entre outros países), infra e ultramarinos, que façam também o seu 25 de Abril.