2006

A variação dos cravos

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 25/04/06

Há exatos dois anos, no dia 25 de Abril de 2004, Portugal comemorou 30 anos do que foi talvez o seu mais importante acontecimento histórico desde a fundação do Estado Português: a Revolução dos Cravos. Não apenas uma ditadura de 48 anos foi desalojada do poder, mas a liberdade teve conseqüências ultra-marinas, com o fim da guerra de África e os últimos suspiros da já agonizante e brutal colonização de Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. O governo português, no entanto, tratou de murchar a festa no aniversário dos 30 anos. Em uma propaganda, pra dizer um mínimo, enganosa, saiu-se com o slogan comemorativo “abril é evolução”, assim mesmo, sem o “R”. Ora, um sentido corrente de evolução é melhora, progresso, aprimoramento de algo que já lá estava, ou seja, um abrandamento pernicioso, com cheirinho de continuísmo, da virada de mesa de 1974.

Portugueses, africanos das ex-colônias lusas, outros lusófonos e brasileiros que - a exemplo do Chico - ficaram contentes com a Revolução, têm toda razão em sentir-se ludibriados pela mensagem evolucionista do governo. Sem querer invadir com as ciências biológicas um fenômeno sócio-político de tamanha importância, digo que os estudiosos da natureza também têm motivos pra desaprovar o (mau) uso do termo “evolução” no contexto do 25 de Abril. Seja lá o que os marqueteiros do governo português imaginaram quando surrupiaram o R da Revolução, evolução biológica não é a mesma coisa que progresso. Linhagens de organismos variam em contínua interação com seus ambientes também variáveis. O próprio Charles Darwin (e a boa parte dos darwinistas) não arriscaria qualquer sentido absoluto ou relativo de “bom” para os diferentes organismos, mesmo em circunstâncias restritas. A marcha triunfal da desconsolada ameba ao glorioso ser humano é um discurso que soa bem do alto de um palanque eleitoral, mas tem pouco a ver com a teoria evolutiva, que trata de milhões de espécies muito bem adaptadas, obrigado, às suas condições de existência.

E Portugal, melhorou? Vou me acovardar (que o dia é de festa) e não responder, mas tenho uma boa desculpa: essa pergunta não cabe nas comemorações do 25 de Abril de 1974, que foi um evento de ruptura, não de ajuste. Aliás, ditaduras são artigos supérfluos de consumo político, para se jogar no lixo, não para serem reciclados. Sei o quanto ainda é preciso navegar, tanto aqui quanto lá, mas isso está a léguas de justificar a volta à submissão política. Vez por outra ouvimos aqui em Vera Cruz vozes saudosas da nossa própria falta de liberdade, dos “desaparecidos”, da corrupção silenciada (não dessa que sai todo dia na Veja) e do porrete na cabeça, sandice que motivou o grande cantor Falcão a compôr a jóia da MPB “Sou mais no tempo do Figueiredo”. Ouçamos o poeta que vale à pena: “Sim eu já tomei um inseticida, pois eu adoro essas comida, que vem pra gente lá dos EUA”. Pois aquele governo português oficializou esse saudosismo brega, mesmo depois de tanto mar...

Há uma ironia adicional nessa história, e não sei se é caso de rir ou de chorar. O cravo vermelho, a flor junto com a cor, é símbolo do 25 de Abril (daí “Revolução dos Cravos”). Como coupe de grace na Revolução encarnada, o malfadado slogan evolutivo do governo foi ilustrado por cravos de cores “soft” variadas: azul, laranja, verde, rosa, nenhum deles vermelho! Agora vejamos. Em 1868, Darwin escreveu a obra “Variação de plantas e animais domésticos” onde trata, entre outras coisas, da variação na coloração... dos cravos. Se há alguma mensagem social no texto de Darwin, certamente não será de apoio ao murcho “abril é evolução”. O naturalista inglês nos diz nesse livro que os cravos são muito voláteis em sua tonalidade, e em um mesmo ramo às vezes só uma flor exibe a influência rubra, enquanto que as demais permanecem “perfeitamente limpas”. Darwin, utilizado politicamente para domesticar um momento de explosão e mudança, concedia espaço largo à diversidade.
Este ano, guarda um cravo, para mim, pá (se possível aquelezinho com a tal influência rubra)!


Racismo não é kosher

Beto Vianna - Jornal O Tempo - 29/03/06

Graças a uma bolsa de pesquisas, estive na Alemanha por nove meses, de 2003 a 2004. Como ex-aluno da Escola Albert Einstein e, portanto, judeu por adoção (pelo menos, sempre tentei namorar as belas judias de minha escola) não podia, estando na Europa, perder a oportunidade de visitar algum dos tantos museus dedicados ali ao povo de Canaã. Assim, com pouco dinheiro ou tempo pra gastar, eu e uma dúzia de colegas (de vários países e religiões, ou, como eu, de nenhuma) aproveitamos dois ensolarados Sabaths para realizar nossa pequena diáspora museológica.

O Museu Histórico Judaico, em Amsterdã, nem chegou a decepcionar. Para entrar num edifício tão feio quanto arrogante (com jeitão de instituição financeira) queriam cobrar de nós, estudantes, absurdos 6,50 euros, o equivalente a 4 canecas de boa cerveja! Entre piadinhas (apropriadas só nesse caso) de Jacó e Jacozinho, desistimos felizes de visitar o museu, gastando em vez disso muito menos para ver os quadros impressionantes de Van Gogh, além de uma boa espiada (também barata) na casa de Anne Frank.

Em Berlim foi outra história. Por apenas 2,5 euros (uma caneca e meia de Weissbier) entramos em uma abençoada viagem por 2 mil anos de história. Com uma arquitetura ousada (o prédio inteiro é uma estrela de Davi estilhaçada) o museu junta profundidade histórica às maravilhas da boa tecnologia, com cuidadosas exposições em vídeo e maquininhas em que se pode traduzir nossos nomes para a língua dos Patriarcas (com caracteres hebraicos e tudo). O mais importante: não vimos ali uma só insinuação difamadora a qualquer povo não-judeu. Ao contrário. Uma história bem contada da epopéia judaica por esse mundão afora só pode se referir aos outros habitantes desse mesmo mundo com todo o respeito possível. Quem for assistir à Copa esse ano, anote o endereço que vale à pena: Jüdisches Museum Berlin, nummer 9, Lindenstrasse.

Cito esse contraste (com algum exagero) entre os dois museus, só para ilustrar um debate que vem ocorrendo há algum tempo neste jornal, que é tudo menos aquilo que parece ser: quem está acertando o alvo ao apedrejar, alternativamente, judeus e muçulmanos. Ilustres profissionais liberais, de médicos a professores universitários, vêm sistematicamente nas páginas de O Tempo - de boa-fé, quem sabe? - agredindo o povo muçulmano, talvez imaginando que, assim, estão defendendo alguma nobre causa judaica. De jeito nenhum! Apesar de ostentarem distintivos sobrenomes asquenazi, esses senhores, agindo assim, ou estão apenas bastante confusos ou são pura e simplesmente racistas. Digo isso com tristeza, pois se há algum grupo auto-denominado que fez parte da minha formação emocional, esse é a comunidade judaica, não apenas em meus muitos relacionamentos pessoais, mas por meus outros tantos heróis científicos e intelectuais, de Houdini ao irmãos Marx, de Franz Boas a Steve Gould.

Em setembro de 1982, alunos do outro colégio de cepa judaica de Belo Horizonte - o Theodor Herzl - foram à nossa escola para uma partida de futebol amistoso (judeu contra judeu é sempre amistoso). Na torcida, estampávamos em nossas camisetas “Begin Assassino” em referência ao massacre comandado pelo Estado de Israel, naquele mês, contra o povo palestino (duplamente covarde, pois só os fantoches sujaram as mãos). Talvez minha memória esteja fantasiando (já lá se vão 24 anos), mas o que me lembro agora é das duas comunidades judaicas apedrejando juntas o que se deve apedrejar: um governo militarista, truculento e autoritário, que, armado até os dentes pelos interesses econômicos das potências ocidentais, vem destruindo o direito de dois povos inteiros em sonhar com suas próprias terras, muito mais que prometidas.

Minhas duas filhas têm nomes de origem aramaica. A mais nova é a Ariel, certamente não em homenagem a Sharon, um terrorista de gabinete, criminoso contra a humanidade, mas por conta da beleza das línguas semitas e dos mistérios da Cabala. “Leoa de Deus” - significa Ariel - e, não, “Lobo do Homem”.


O islã que eu pedi a deus

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 16/02/06

Respeito e ética têm sido tratados ultimamente - reclama-se por aí - como roupa velha, que a gente usa, lava, dá, reforma, joga fora, ou guarda por valor sentimental. Mas é isso mesmo o que eles são, afinal. Ou os objetos do nosso respeito e os códigos da nossa ética estão gravados em alguma pedra imemorial? E aí o universo da charge cai em cheio nessa discussão sobre a permanência e mudança dos valores, de tempo pra tempo, de povo pra povo. Por exemplo, tem a cruzada gráfica bilateral contra o profeta e contra a memória do holocausto. Se toda questão tem dois lados, essa tem quatro. Ambos os lados são desrespeitosos do ponto de vista dos atingidos, os dois desrespeitos cabem nos valores de quem os produziu, os atingidos têm razão em protestar e os consumidores da charge alheia, em rir (se é que são boas, não vi nenhuma). Menção honrosa para a contra-ofensiva iraniana, apenas por ser educativa. É de muito mau gosto - para mim e talvez pra você - brincar com os horrores do holocausto, mas é justamente pelo mau gosto extremo que o concurso chargístico consegue mostrar os “limites da liberdade de expressão no ocidente”. Como no princípio do terrorismo, abrir os olhos com o magnífico, já que ninguém se importa com miudezas como a miséria, a desnutrição e a guerra. Rimos da devoção alheia mas sentimo-nos ultrajados com a banalização de um relicário próximo, o que é tão compreensível quanto útil.

Dito isso, anti-semitismo e anti-islamismo são solenes tradições de nossa devotíssima sociedade cristã (aquela que prega dar a outra face), a primeira mais arraigada e a segunda mais recente mas ainda mais perversa. Dizer agora que o holocausto é um mito é, no mínimo, esquisito (o próprio ministro da propaganda de Hitler fez belas filmagens, pra quem quiser checar), e desde que as potências ocidentais colocaram seus bonecos no Levante o termo “terrorismo” virou assunto popular (tal qual o sexo, ensina Zé Ramalho) e adjetivo perene de nós-sabemos-que-povo. Judeus e árabes são, assim, em conjunto, como numa caixa de Bis, negociantes traiçoeiros e ladrões. Revivendo Cesare Lombroso e a criminologia científica do atávico, nariz grande revela o pecado papal da usura.

E por falar em Ali Babá, tem a marca dos 26 anos do PT. Parabéns ao partido pela volta por cima e ao Lula pela recuperação nas pesquisas, mas, ô Ziraldo, cê tava pensando em quê quando desenhou aquela cornucópia? Chargista, depois de tempo na estrada, não consegue mais desenhar sem cometer uma gozação. E agora que agüentem nossos mais caros valores.


Anarquia, responsabilidade e ciência

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 10/02/06

Não sei por que cargas d´água (ou talvez saiba, mas pratico a ignorância em nome da convivência), “anarquia” virou nome feio no nosso vocabulário. É sinônimo de “bagunça”, “desvario” e “confusão”, acho que até no Aurélio, mas ô preguiça de consultar! Ainda assim, os anarquistas foram os melhores críticos de um sistema vigente na maioria dos países que levamos a sério - a tal “democracia” - que, no mínimo, deixa o cidadão quatro anos inteirinhos sem participar do processo de decisão. Quando eu era presidente da Federação Mineira de Pára-quedismo (olha como confesso rápido minha proximidade com o poder), um amigo meu, então reitor da UFMG (agora minhas costas largas estão à mostra), aconselhou-me o seguinte: “não tente dar ordens, divida as responsabilidades; só quando vêem que são co-responsáveis os outros membros do grupo irão trocar as críticas pelo arregaçar das mangas”. Podemos ler esse conselho como uma estratégia oportunista de governo, mas, na prática, é isso mesmo que faríamos bem em exercitar, seja na gestão de uma entidade ou na convivência inter-pessoal: dividir responsabilidades. O biólogo chileno Humberto Maturana disse uma vez que “somos plenamente responsáveis pelo que dizemos, mas maravilhosamente irresponsáveis pelo que os outros escutam”. Taí: política é responsabilidade, não a responsabilidade dos outros, que essa é muito fácil (e improdutiva) de apontar, mas a nossa mesma. Desde que, é claro, seja concedido a todos o direito de atuar, e aí os anarquistas são os nossos melhores conselheiros. Responsabilidade de todos é bagunça só no discurso de quem quer mandar na gente.

A diferença entre política e ciência, quando o assunto é responsabilidade, é menor que zero. Cientista que diz estar “dizendo a verdade” sem assumir compromisso social tem que ser internado com camisa-de-força. Não devemos nos surpreender, portanto, que um dos anarquistas mais interessantes da história - Petr Kropotkin - tenha sido um baita teórico das ciências naturais. A exemplo de Buda, Zaratrustra e Gandhi (e de Jesus, pois, apesar desse palestino ter sido adotado por um humilde carpinteiro, era filho legítimo da figura mais poderosa do universo), o príncipe Kropotkin largou os benefícios do sangue azul para dedicar-se a três atividades das mais improváveis: a) a construção do pensamento anarquista; b) a dura vida de funcionário-investigador nas estepes russas; e, c) a conciliação da teoria evolutiva de Darwin com a “ajuda mútua”, ou seja, a cooperação.

Até hoje muita gente acha que a “evolução darwinista” é a competição de todos contra todos pelo sucesso: no mundo da vida, dos negócios, e até do amor. Em 1902 - e já lá se vão mais de 100 anos - Kropotkin mostrou que a metáfora darwiniana da “luta pela existência” (que o próprio Darwin reconheceu, em sua obra Origem das espécies, ser uma fonte potencial de mal-entendidos) não quer dizer que um organismo tem de sacanear o outro pra sobreviver. É claro, um cientista que viveu sua a vida inteira no nosso medíocre mundinho dos negócios, quando olha pra natureza não consegue ver outra coisa: leões comendo zebras, leões brigando com outros leões pela posse das leoas, e as zebras (perversamente, diríamos), negando o mais que podem aos leões essa preciosa fonte de proteína: elas mesmas. Nossos amigos cientistas ocidentais ficam tão encantados com essa estratégia empresarial da natureza que, mesmo quando vêem dois animais cooperando entre si, apressam-se em dizer que deve haver alguma “vantagem evolutiva” por trás da rasgação de seda (como as empresas que investem em programas ambientais para ter benefícios do governo ou melhorar a imagem junto ao público consumidor).

Mas o príncipe Kropotkin teve a dupla sorte de, além de não compartilhar essa ideologia “business” com o resto de nós, ter feito história natural nas áridas estepes, onde é mais fácil encontrar uma plantinha solitária dignamente esforçando-se para sobreviver do que dois galinhos de briga tentando se dar bem. Organismos não vivem degladiando-se, e, mesmo que o façam de vez em quando, não têm esse “propósito”. Os seres vivem em várias condições que vão (como Kropotkin ressaltou) da ajuda mútua, da cooperação e da simbiose, passando pela total indiferença por outros seres à sua volta, até rusgas de vários tipos e níveis. Quem é juiz nesse mundo pra decidir que a competição é a alma do negócio? (E lembre-se: se você achar que é o juiz, por uma questão de ética, tem que ficar de fora da competição. Isso eu aprendi no pára-quedismo).


LUCA 0:00

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 21/01/06

LUCA é o último ancestral comum universal (Last Universal Common Ancestor), nomezinho redundante, pois tanto “comum” quanto “universal” significam “de todos nós”. Juntar os dois termos serve apenas para compor esse simpático nome próprio, meio italianão, ao estilo de Lucy (ancestral da família humana) e Luzia (a “primeira brasileira”). LUCA desce a porões ainda mais fundos da história, os primórdios de todo ser vivo existente. Mas quem é LUCA? Ele realmente existiu? LUCA faz parte desses objetos da ciência de que nunca houve o menor indício, e no entanto, precisa existir, pois nossas teorias de plantão exigem sua presença no universo das coisas.
Acredita-se que todo organismo atual descende de um só estoque ancestral. Isso porque, no nível molecular, todo ser vivo é parecido demais para ter surgido mais de uma vez. Assim, mesmo sem sabermos quando ou onde, tem de ter havido um LUCA. Imagine que, viajando pelo planeta, você encontra um sujeito que é a sua cara numa remota ilha do Pacífico. Faz o teste de DNA e a suspeita se confirma: você e o ilhéu têm, de fato, algum parentesco, e em alguma época e lugar é preciso ter existido um ancestral em comum. Pode ser uma avó (e um avô), um bisavô (e uma bisavó), ou um obscuro casal que viveu há 300 anos em qualquer canto do globo. Assim é LUCA, só que em relação a todos os seres vivos, não só os humanos.

Uma confusão surge sempre que falamos em último ancestral comum: se por um raro golpe de sorte acharmos o tal LUCA, significa que desvendamos a própria origem da vida? De jeito nenhum. LUCA é apenas o último ancestral de todos nós, e, não, o primeiro ser vivo. A vida pode e deve ter surgido antes de LUCA - e ter surgido várias vezes - apesar de nenhum descendente desses pioneiros estar vivo hoje pra contar a história.

Algo parecido acontece com a “Eva Mitocondrial”. Como sugere o nome, essa é a última ancestral comum de todos os seres humanos, a vovozona da humanidade. Posta a necessidade lógica de uma mulher assim, os cientistas trataram de rastreá-la, graças a um detalhe da herança genética. Na fecundação, o DNA do núcleo dos dois gametas combinam-se, compondo o DNA da filha ou do filho. Mas há DNA também nas mitocôndrias (organelas presentes nas células), e esse só é transmitido ao longo da linhagem feminina. Comparando o DNA mitocondrial de várias mulheres no mundo todo, os cientistas chegaram à seguinte conclusão: “Eva” viveu na África há uns 150 mil anos (há estudos com datas diferentes). Isso quer dizer que Eva foi a primeira mulher? É aí que o nome bíblico engana. Na época da tal Eva havia outras mulheres, e havia outras antes delas, que não deixaram descendentes até os nossos dia, só que seus genes não se conservaram até a população atual. Eva não foi a primeira, apenas uma matrona privilegiada, pois cada ser humano atual é ou uma “netinha” ou um “netinho” de Eva.

Se há uma Eva, deve ter existido um “Adão”. Dessa vez a ajuda veio do cromossomo Y, transmitido só na linhagem masculina. Segundo as pesquisas, Adão também viveu na África há cerca de 150 mil anos, e aqui reside outra confusão. Não é necessário que Eva e Adão tenham convivido ou sequer se conhecido. A árvore genealógica de genes é bem diferente da árvore genealógica de pessoas: o último casal ancestral de todos nós certamente existiu, mas as origens do DNA mitocondrial e do cromossomo Y sobreviventes na população atual não precisam coincidir no tempo e no espaço.

Complicado? Então pense em LUCA. Pelo menos sabemos que Adão tinha dois olhos, uma boca, e doze costelas (presume-se). Afinal, ele era tão humano quanto qualquer um de nós. Mas LUCA, como uma vez disse Churchil a respeito da União Soviética, é um mistério envolto num enigma embrulhado num quebra-cabeça. É tão grande a diversidade dos organismos atuais, e tão diferentes os seus modos de vida, que não há nem como imaginar os gostos e maneiras de LUCA. Os três grandes grupos de organismos atuais, os eucariotas (nós), as bactérias “comuns” e as arqueobactérias podiam muito bem estar habitando planetas diferentes. Se nós adoramos oxigênio, há bactérias que não toleram respirar esse gás. Nós viramos churrasco em temperaturas acima de 100oC, mas para algumas bactérias - as termofílicas, “amantes do calor” - isso é até bem fresquinho. O ácido sulfúrico é um desastre para nós, e um saudável vício para certas bactérias, e por aí vai.

Talvez seja bobagem preocupar-nos com a aparência desse avô universal. Assim como reverenciamos nossos ancestrais humanos sem tê-los conhecido, assim como desculpamos seus defeitos e inventamos suas qualidades, podemos muito bem lembrar de LUCA com carinho, ainda que nos falte o seu retrato na parede.


Boa correlação, má explicação

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 15/01/06

Devíamos repetir a seguinte frase como um mantra, antes do café-da-manhã: não há categorias na natureza. No entanto, categorias são cruciais para falarmos sobre essa natureza, ou, como disse um filósofo austríaco de nome impronunciável, “do que se não pode falar, é melhor calar-se”. Aprendemos muito cedo significados particulares de “mulher” e “homem”, e vivemos a vida às voltas com essas distinções. É a partir dessas categorias que negociamos e modificamos seus significados. Ainda que tal negociação faça parte do dia-a-dia, falar de categorias como construção social continua irritando muita gente, como se isso fizesse toda e qualquer diferença entre “mulher” e “homem” desmanchar no ar. Não faz, eu garanto (tenho duas filhas, e a minha namorada, até onde eu saiba, é uma fêmea legítima).

Pelo que entendo de nossa biologia, e, por outro lado, da história da sociedade industrial, a mulher sempre esteve no mercado de trabalho. Uma regularidade do modo de vida humano é o investimento de ambos os progenitores na sobrevida da prole, e, para além da família, a participação de todos os membros da comunidade na sobrevida do grupo. Isso nunca quis dizer que uma classe de membros (os de ancas largas) tem de ficar em casa fazendo a janta, e a outra (de barbas longas), sair pra caçar ou fazer seja lá o que for. Ao falarmos na correlação entre “consumo”, “mercado de trabalho” e “mulher”, não há dúvida de que cada categoria dessas só faz sentido no contexto das atuais relações econômicas e de outras facetas das relações humanas, como a construção da noção de “outro”.

Tanto os menininhos quanto as menininhas de nossa sociedade tendem a construir a mulher como um “outro”. Um exemplo batido, mas que merece ser repisado pela clareza, são os hiper-consumidos filmes Disney. Eles nos ensinam a viver as relações de consumo em sintonia com a distinção, não só da mulher, mas de “árabes”, “índios” e “latinos”, como alteridades, seres diferentões, de idiotizados a malévolos. Não é preciso ser mulher para sofrer esse processo de estranhamento com algo que, pelas categorias aprendidas, deveríamos nos identificar. Nós, brasileiros, vivemos isso em O Rei Leão. Além do estabelecimento do masculino como a única fonte concedida de poder, ali os nobres leões rugem com acento britânico, enquanto as depravadas hienas cacarejam com o sotaque suburbano de negros e latinos (idéia que roubei de Henry Giroux). Quem acha que a reprodução desse modelo em nada afeta o modo de nossas crianças construírem suas categorias, deve ter assistido, como eu mesmo, a filmes Disney demais!

Dá-se um processo semelhante ao discutirmos o impacto da “mulher trabalhando fora” nas relações familiares, e então inferir - como é objeto deste debate - um papel causal da correlação observada entre a inserção econômica da mulher e um “consumismo”. Tem algo errado aí. Consumismo - a aquisição de bens em escala maior que os ditames da subsistência - é uma demanda dos donos da produção, ávidos por desovar seus artigos a qualquer custo, desde que não seja o próprio. Inicialmente, “mulher trabalhando fora” (insisto em colocar isso entre aspas: pensem nos arrozais do Vietnam!) é uma necessidade de recrutamento de mão-de-obra. Barata, é claro, pois esse recrutamento é feito diretamente em uma sociedade patriarcal que configura - assim nos ensinam Simba e Nala - a mulher como cidadão de segunda classe. Em um segundo momento, não passou despercebido que esse novo trabalhador é também consumidor, com necessidades próprias e específicas, uma diversidade sempre bem-vinda no perspicaz mundo dos negócios.

De onde vem a idéia da “mulher, a consumista”? Não de um histórico poder econômico, pois, como todos sabemos (e a maioria dos patrões, além de saber, pratica), mulher ganha menos, nada mais sendo variável. Para entender, passamos dos leões à loiríssima Barbie. Ao comprar uma Barbie, a menininha leva de brinde (dessa vez roubei a idéia de Shirley Steinberg e Bernadete Mourão): a) um modelo de beleza; b) um modelo de consumo adequado ao feminino (futilidade e alienação); e c), o mais importante, a cultura da não-produção e da submissão. Brinquei de Falcon quando garoto, com o mesmíssimo resultado ideológico do não-brincar-de-Barbie: homens fazem, mulheres consomem. É notável como isso é contrário à experiência da maioria de nós, homens, de mulheres trabalhando duro à nossa volta, a vida inteira!

No mínimo, a categoria “mulher, a consumista” é resultado da sociedade patriarcal de consumo. No máximo, o caminho causal inverso é uma boa correlação, dificilmente uma explicação, e de modo algum uma boa explicação.